É difícil fechar os olhos e dormir quando o dia não foi como você gostaria.

O barulho da esteira, a voz do fisioterapeuta e o eco da sala de academia ainda martelam nos meus ouvidos. Sem parar. É como se a vida acabasse numa noite e recomeçasse, do mesmo jeito, na manhã seguinte.

A cada tentativa de voltar a jogar bola, uma lição que a vida me dá.

Preciso ser paciente.

Esta noite, ao fechar os olhos novamente, uma inspiração surge em minha mente.

Volto ao ano de 2014. Estava feliz, ganhando espaço no Cruzeiro, disputando um torneio nos Estados Unidos. Eu e Drika tínhamos acabado de ter nosso primeiro filho, e os planos eram muitos. Até que recebi uma ligação do Brasil: “Enzo não está bem”. Ele precisava muito de mim.

Por mais que jogar uma partida de futebol exija de mim um nível de concentração absurdo, a gente só percebe nossa força quando somos pais. E quando voltei ao Brasil e vi o meu Enzo em coma induzido, na UTI, percebi que precisava ser forte. Ele precisava muito de mim. Drika precisava muito de mim. Juntos, sairíamos do momento mais difícil das nossas vidas.

A cada diagnóstico dos médicos, o que parecia nos deixar sem esperanças fortalecia ainda mais o meu filho. Ele saiu do coma, se recuperou, voltou para casa. Foi diagnosticado com paralisia cerebral. A sua luta pela vida continua todos os dias. Fonoaudióloga, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional. Enzo é um exemplo de força para mim. Logo eu, um cara que sempre lutou para demonstrar força.

Enzo é o maior exemplo que eu poderia ter.

Quando tive a minha primeira grave lesão, naquele jogo contra o Atlético, em Goiânia, achei que voltaria rápido. Pô, sou um cara que nunca passei por isso antes. Cinco partidas de fora? O calendário passa rápido, e já já estou de volta, pensei. Minha dedicação sempre foi a mesma todos os dias. Olhar pela janela da academia os meus colegas treinando no campo me motivava ainda mais.

Eu estava voando, cara. Antes daquele jogo em Goiás, eu tinha entrado em campo 34 vezes em 2017. Fui titular em todas as partidas, substituído em apenas três delas, sempre no finalzinho. Levantei a taça de campeão baiano pela segunda vez consecutiva. Fiquei suspenso só uma vez. Até aquele dia 8 de julho, tudo estava indo muito bem.

Esse tipo de situação nunca fez parte da minha vida. Desde moleque, sempre gostei de correr. Aliás, nas brincadeiras de polícia e ladrão em Curitiba, eu gostava de ser o ladrão, pois era o cara que corria mais. No futsal do Coxa, saía de quadra extenuado. Nunca foi problema colocar meus pulmões para trabalhar dobrado.

Meu sono teima em querer chegar, e agora penso no Vitória.

Em sempre quis vestir a camisa do Coritiba. Desde moleque. Quando me tornei profissional, realizei um sonho de vida. Fui campeão, cheguei em duas finais de Copa do Brasil, fui vendido para o Cruzeiro. Conquistei dois títulos brasileiros, fui à outra final de copa, mas faltava alguma coisa. No Vitória, além de ter uma sequência como titular, me senti bem à vontade no clube.

Eu gosto de vestir essa camisa. O torcedor do Vitória sempre fala que prefere os jogadores mais raçudos, que se entregam dentro de campo. Casamento perfeito! Eu fui “ladrão” na infância, e minha missão passou a ser roubar bolas dos adversários. O pique continuava o mesmo. Se entregar dentro de campo é algo natural para mim.

Por isso também me entrego fora dele, a cada sessão de fisioterapia.

É muito duro ter que passar por isso. Sempre me senti muito mal ao ver companheiros de time passar por lesões graves. Nós, atletas de alto rendimento, precisamos do nosso corpo para sustentar nossas famílias. Ficar longe do que ama fazer é um golpe difícil de absorver. Sentir na pele todo esse sofrimento faz com que valorizemos ainda mais cada partida jogada. Impossível não chorar ao perceber que você não pode ajudar seus colegas num momento difícil do Vitória em 2017. Torcer não é o suficiente.

Os olhos lacrimejam, a insônia segue me castigando, mas agora Enzo toma conta dos meus pensamentos.

Como eu disse, meu filho é o maior exemplo que eu poderia ter. Quando eu estava no Cruzeiro, saía dos treinos e partia direto para o hospital. Perdi sete quilos e a vontade de trabalhar. Encontrava Enzo forte, lutando pela vida. Sem saber, ele estava me dizendo para eu não desistir. Foram quase 40 dias me dizendo a mesma coisa.

Três anos depois, ele segue me dizendo a mesma coisa. Todos os dias.

Conquistei títulos, ganhei a confiança de torcedores, me tornei capitão no Vitória. Minha princesinha Lara nasceu, e deixou nossa casa ainda mais feliz. Agora, tenho dois tesouros que me fazem entender o sentido da vida. Drika, o amor da minha vida, é a melhor companhia do mundo. Enzo é o exemplo de superação da nossa família.

Eu não tenho o direito de desistir.

Vou seguir com o barulho da esteira, a voz do fisioterapeuta e o eco da sala de academia ainda martelando nos meus ouvidos por algum tempo, mas não vou deixar de lutar.

Estarei de volta em breve. Vestirei a camisa do Vitória como se fosse a primeira vez. Voltarei a fazer o que eu amo. Essa batalha diária é por Drika, é por Lara, é por Enzo. É pelo Vitória. É pela honra.

Me sinto mais tranquilo.

Agora, preciso dormir. O sono, enfim, está chegando.

Willian FariasParanaense de Curitiba, Willian Roberto de Farias nasceu no dia 6 de junho de 1989. Criado nas categorias de base do Coritiba, passou pelo Cruzeiro até chegar ao Vitória, em 2016. É pai de Enzo Gabriel e Lara.