É evidente que há uma desproporcional turbulência pré-carnavalesca ganhando volume pelos lados do Morumbi. Para analisarmos o trabalho de Dorival Junior com algum compromisso com os fatos, entretanto, é preciso levar em conta algo que não pode ser jamais desprezado de qualquer avaliação: o contexto. Mais do que qualquer bola na trave do Bissoli, o passe errado do Edimar ou o Diego Souza sofrendo a valer para se adaptar à camisa 9, é inacreditável que desconsideremos o caótico cenário herdado pelo atual treinador são-paulino antes de julgarmos seu ainda incipiente trabalho, que nesse ano certamente tende a ser bem diferente do projeto emergencial de resgate do Brasileirão passado. É agora, em 2018, passado o furacão, que poderemos ver com mais clareza quais são as ideias de Dorival.

Por falar em contextos e heranças, vamos a um exemplo, amparado em números bastante sintomáticos e reveladores: no Majestoso do fim de semana, o Tricolor escalou apenas 3 (TRÊS) titulares que estavam presentes na pré-temporada de um ano atrás, na famosa Florida Cup de 2017 – por sua vez, realizada com outro treinador também. E olha que estamos falando de dois então recém-chegados ao elenco (Sidão e Shaylon) e apenas um bravo sobrevivente de 8 temporadas no profissional (Rodrigo Caio). Nosso rival, por outro lado, alinhou neste sábado 9 (NOVE) titulares que estiveram presentes na pré-temporada passada – ou seja: todo o time, exceto Juninho Capixaba e Clayson. Seu técnico, cabe notar, era o mesmo. Já de partida, não notamos uma escandalosa diferença ou, como diriam os adeptos de anglicismos, um handicap extremamente desfavorável?

Chega a ser chover no molhado, mas diante do clima de fritura precoce que se desenha a Dorival Junior, se faz necessário lembrar da catástrofe que é a montagem (e veloz desmontagem) de elencos no Morumbi. Voltemos à temporada 2016, a primeira inteira de Leco na presidência – uma vez que seria injusto cobrá-lo pelo que outros mandatários fizeram. Ali, foram contratados 14 (CATORZE) jogadores, dos quais apenas 1 (HUM) permanece. Este único jogador, Cueva, por sinal, acaba de protagonizar mais um episódio de mau profissionalismo ao tentar forçar sua saída do clube, como outros já fizeram (e foram bem-sucedidos). Quando falamos de contexto, é importante lembrar que aquele era um ano de reconstrução completa do clube, em que uma quase acidental classificação para a Libertadores e uma debandada de nomes forçaram Gustavo Vieira de Oliveira a caçar reforços a tiro curto no mercado, muitos deles por empréstimo, o que pode ajudar a justificar a alta rotatividade no plantel.

Pois bem: avançando um pouco no tempo, o Tricolor trouxe 19 (DEZENOVE) nomes ao longo de 2017, dos quais 10 (DEZ) já deixaram o clube. A saber: Wellington Nem, Cícero, Neílton, Pratto, Marcinho, Jony Gómez, Thomaz, Hernanes, Denílson e Maicosuel. O discurso de responsabilidade nos gastos e recuperação financeira do clube, que teve seu cofre esburacado após a gestão Aidar, cai completamente por terra quando analisamos a maioria destes casos. Comissões e salários estratosféricos, contratos longos com jogadores de histórico nebuloso e/ou inexpressivo e que rapidamente caem fora dos planos das diversas comissões técnicas, altos valores pagos em transferências sem sentido, muitas delas pedidas por técnicos rapidamente demitidos (ou demissionários) e, principalmente, um irrecuperável tempo perdido.

Isso não se pode comprar: tempo. Sem esse elemento, só mesmo a mágica pode funcionar no futebol. De vez em nunca, como no Santos de 2002, o raio cai e faz com que uma equipe dê liga imediatamente, o que ilude muitos torcedores. A regra, contudo, passa longe de ser essa e podemos citar aproximadamente um bilhão e meio de exemplos. A pergunta é: com dois elencos diferentes por temporada (e normalmente duas comissões técnicas também, além de diversos diretores de futebol, gerentes e manda-chuvas em geral), aonde exatamente o São Paulo espera chegar? Parecemos um castelinho de areia que, quando ameaça tomar alguma forma, é destruído por uma onda do mar. E aí, feito um Tonho da Lua da vida, recomeçamos a construção do castelinho, esperançosos de que dessa vez será diferente. Até que Iemanjá, Netuno ou Poseidon envie outra onda feroz e mande o castelinho abaixo de novo. E lá vamos nós para mais uma reconstrução…

Goste a torcida ou não, Dorival Junior foi fundamental na escapada de um rebaixamento que parecia líquido e certeiro ano passado e, contra todas as probabilidades, em algum momento conseguiu contribuir para dar uma cara segura e fazer o São Paulo emendar uma sequência que lhe permitiu ostentar uma das melhores campanhas do segundo turno do Brasileirão. Fez sua obrigação e, além disso, projetou um esboço do que poderia ser um time melhor para este ano. E aí veio o réveillon, e janeiro, e é impensável que se esqueça dos casos de Hernanes, Pratto e o blasé Cueva, todos golpes duros, que diminuíram em muito – e de uma vez só – o já antes questionado poderio técnico da equipe, às vésperas do início da temporada 2018. As reposições (de nível inferior) chegam agora: o esforçado Tréllez e o veterano Nenê, que sequer debutaram.

O diagnóstico de Dorival após alguns meses de cargo era de que, à exceção de Marcos Guilherme, o plantel não contava com peças de velocidade para as pontas. Uma equipe essencialmente lenta e sem contra-ataque, arma que sempre marcou o DNA dos melhores trabalhos do treinador. Dessa forma, o ganho de status de Brenner e a promoção de garotos como Caíque, Paulinho Boia e Marquinhos Cipriano não são por mero acaso, assim como não é acidental a procura por Valdivia, que vem muito em baixa na carreira, mas há 18 meses era cotado para integrar a Seleção Brasileira que foi às Olimpíadas. Nenhuma dessas peças ainda teve tempo de chegar, entrar e mostrar serviço. Vários deles têm menos de 5 partidas como profissionais, e no que depender da fúria das redes sociais, nem chegarão a ter.

Cobrar o trabalho do treinador não pode ser confundido com fritá-lo e incorrer no mesmo erro que trucida o planejamento são-paulino há 10 anos. Pedir Jean e Reinaldo como titulares, aguardar ansioso pelo retorno de Arboleda e Cueva e a estreia dos reforços é uma coisa; exigir a cabeça de Dorival Junior após o quinto jogo da temporada é outra, completamente insana. É jogar o pouco que deu para se construir no lixo e resetar pela enésima vez o jogo, provando para todos que rumamos firmes para o apequenamento definitivo. É desperdiçar uma pré-temporada que ainda está em andamento. É ser o que São Paulo tem sido: um clube cego para seus maiores problemas e que vira seus canhões para os sintomas, e nunca para as causas.

A corneta é um direito divino e, mais do que isso, uma tentação. É gostoso criticar e expor o que nos incomoda. Ninguém é obrigado a ser paciente ou compreensivo, mas é preciso, em nome do que resta de razão em meio ao caos e a tantos programas de “debate esportivo” (aspas aqui) sedentos por propagar a instabilidade num clube já há anos convalescente, relembrar que tudo o que sentimos é resultado de um acúmulo de uma longa era de terríveis gestões, simbolizadas por um sem número de contratações sem critério e sem pai, feitas de maneira irresponsável, na base do uni-duni-tê, e jogadores que jamais chegam a criar um mínimo laço com a instituição, seja por falta de qualidade, confiança, tempo ou vontade. Um clube que tem sido gerido à base de pacotões, trazendo e depois entregando a cabeça de treinadores e alguns atletas como prêmio aos leões, não pode ter qualquer ambição séria.

Esperemos com muita sinceridade que essa temporada seja diferente. Pra variar, há uma safra extremamente promissora vindo de Cotia, que já cansou de ser o colete salva-vidas para os problemas do São Paulo, o clube que visivelmente não sabe nadar. Dorival já demonstrou em diversos momentos da carreira ser um dos melhores lançadores de talentos do futebol brasileiro, mas isso simplesmente não vai acontecer se seu trabalho for boicotado desde o princípio. O valor real do Paulista, vamos repetir para não esquecer, é ser uma extensão da quase inexistente pré-temporada. Queremos e merecemos um futebol melhor, mas acredito que enquanto torcedores, podemos contribuir para isso ao não cair nas velhas armadilhas de sempre. O time não está pronto porque simplesmente o tempo não se compra.

GE – Pedro de Luna