Pouco mais de um ano de trabalho, um título do Campeonato Paulista. Na frieza dos números, é difícil medir a importância que Béla Guttmann teve no futebol brasileiro. Algo que pode ser dimensionado melhor através da façanha da Seleção na Copa do Mundo de 1958. Porque o primeiro título mundial do Brasil deve muito ao comandante húngaro. Sua influência sobre a mentalidade tática de Vicente Feola foi um dos fatores decisivos para a conquista na Suécia.

Por tudo o que fez ao longo da carreira, Guttmann pode ser facilmente colocado entre os melhores técnicos da história. E um dos grandes comandantes estrangeiros a deixar marcas profundas no Brasil. O último mestre húngaro, de tantos compatriotas que podem ser colocados como responsáveis pelo estilo de jogo que consagrou o futebol praticado por aqui. A qualidade técnica, é claro, já existia. Mas a mentalidade foi desenvolvida a partir de Ladanyi, Kürschner e Guttmann. Três nomes que deveriam ser mais lembrados, sobretudo, por mostrarem que só o que se conhecia no Brasil não era suficiente no futebol, e que é possível se acrescentar ainda mais através do conhecimento.

As inovações de Guttmann no São Paulo

Béla Guttmann não era o plano principal do São Paulo. Antes, o clube havia negociado com vários outros treinadores, entre eles Oswaldo Brandão e Aymoré Moreira. Com a recusa, a alternativa era o húngaro, que sequer falava português. Ainda assim, os tricolores resolveram manter a aposta em um comandante que possuía boa fama no exterior. O negócio estava fechado nas primeiras semanas de 1957, com o novo técnico deslocado inicialmente para a função de observador, acompanhando partidas e treinos para conhecer a equipe. Já Feola passaria a fazer parte da comissão técnica.

Inicialmente, Guttmann teve que lidar com as desconfianças. Os métodos de treinamentos de um europeu eram vistos com ressalvas, especialmente pela forma como seriam recebidos pelos jogadores. Em março, o novo técnico começou o trabalho, insistindo nos treinos táticos e de fundamentos– como já havia feito Kürschner no Flamengo. E, se não falava português, o húngaro tentava transmitir o que queria da maneira como dava. “Pá, pá, pá, pum!” era o seu principal comando naqueles dias, pedindo para que os jogadores tocassem e finalizassem.

Durante as atividades da equipe, Guttmann dava o exemplo aos jogadores de como fazer – e se aproveitava das enormes qualidades dos tempos em que era jogador. Mais do que isso, começou a implantar técnicas simples, mas extremamente funcionais, como treinos de chutes em alvos e intensificação do trabalho com o goleiro José Poy. Os resultados do trabalho acabaram aparecendo rapidamente, especialmente com o ótimo elenco que o São Paulo possuía na época, estrelado por Zizinho, Dino Sani, Mauro Ramos e Canhoteiro.

A grande conquista de Guttmann à frente do São Paulo foi o Campeonato Paulista de 1957, ainda hoje um dos mais celebrados pelo clube. O Tricolor teve 13 vitórias e só sofreu uma derrota naquela campanha, com ótima média de 2,94 gols marcados por partida. Na decisão, vitória por 3 a 1 sobre o Corinthians. Era a consagração do método do técnico húngaro, que tinha feito uma campanha apenas mediana no Torneio Rio-São Paulo, terminando com o sétimo lugar.

A principal herança do mestre húngaro

Mais do que os métodos de treinamento ou o título, Guttmann marcou em sua passagem no Brasil pela inovação tática que ajudou a implementar. Um dos cérebros no comando do futebol húngaro durante a década de 1950, assimilou a transformação do WM em 4-2-4 que se iniciara no país. Uma mudança que, mais do que numérica, também refletiu no domínio da seleção e no bom desempenho dos clubes do país na época. O centroavante transformado em meio-campista, personificado por Nándor Hidegkuti nos Mágicos Magiares, fazia uma diferença enorme para desestabilizar as defesas adversárias. Uma tática que Guttmann ajudou a expandir as fronteiras.

O primeiro país que recebeu as inovações pelas mãos do técnico foi a Itália. No Milan, o técnico possuía uma verdadeira seleção para poder aplicar as novidades. A linha de frente formada por Gren, Nordahl, Liedholm e Schiaffino é uma das mais célebres da história do futebol italiano, e teve seu potencial bastante explorado por Guttmann. Qualidade técnica que o treinador também encontraria no São Paulo, onde também utilizou o 4-2-4, até então inédito no Brasil. Sobretudo, com uma mentalidade ofensiva.

“Sempre me interessou que o ataque fizesse mais gols do que obrigar a defesa a não os sofrer. Não me desgosta nada que o adversário marque três ou quatro gols, desde que a minha equipe marque quatro ou cinco…”, declarou Guttmann, em 1962, durante entrevista ao jornal português A Bola. Algo que já era possível de notar desde os tempos de São Paulo: “Cada equipe precisa de ter um sistema próprio, adaptado às características dos jogadores. E assim como um alfaiate não faz o mesmo feitio para um corcunda ou para um homem normal, do mesmo modo um treinador não pode dar a todas as equipes o mesmo figurino de jogo”.

O futebol ofensivo e a adaptabilidade de Guttmann no Tricolor acabaram se refletindo na seleção brasileira rumo à Copa de 1958. Vicente Feola, que seguia trabalhando no clube ao lado do húngaro, foi nomeado o treinador do Brasil em maio daquele ano, às vésperas da Copa. Montou a equipe com o 4-2-4 que havia aprendido com o estrangeiro: Didi era o diferencial tático, assim como Hidegkuti na Hungria, embora com características individuais totalmente diferentes. Havia, é claro, essa adaptação à característica dos jogadores. Não à toa, outra novidade da equipe era o papel de Zagallo recompondo o meio-campo e dando liberdade para Nilton Santos atacar pelo lado esquerdo. No esquema de Guttmann, o Brasil contou com grandes atuações de Didi, Pelé, Garrincha, Vavá. Conquistou sua primeira Copa do Mundo.

O adeus repentino de Guttmann

A saída de Béla Guttmann do São Paulo aconteceu pouco mais de um mês depois da conquista do Mundial de 1958. Não pelos resultados esportivos, já que o Tricolor estava contente com o técnico, apesar da quarta colocação no Torneio Rio-São Paulo. Existem duas histórias para explicar a despedida do clube: uma, afirmando que o próprio húngaro teria pedido para sair, por conta de problemas de saúde de sua esposa, que desejava voltar à Europa; outra, por conta da alta do dólar, que impedia os são-paulinos de continuarem pagando os altos salários do técnico, aceitando sair amigavelmente.

O fato concreto é que Guttmann deixou o São Paulo para se tornar uma lenda ainda maior na história do futebol. Conquistou o Campeonato Português de 1958/59 pelo Porto, antes de formar o grande esquadrão do Benfica na década de 1960. Foi bicampeão nacional e da Copa dos Campeões. A conturbada saída dos encarnados em sua segunda passagem, no entanto, acabou na famosa maldição de que o clube não voltaria a ser campeão europeu em 100 anos.

Já o São Paulo viveu o seu maior jejum de títulos após a saída de Guttmann, voltando a erguer uma taça apenas em 1970. A seleção brasileira, ao menos, continuou desfrutando da herança de Guttmann por mais tempo. Bicampeã do mundo, a equipe deixou para trás o complexo de inferioridade que a marcava, enquanto o tricampeonato ainda teve resquícios daquela influência tática. Não há outro país no mundo que o futebol brasileiro deva ser mais grato do que a Hungria, por tudo o que os seus professores ensinaram.

Fonte: trivela.uol.com.br