Duas decisões recentes da Justiça deixaram os clubes assustados. O meia Maicon e o ex-zagueiro Paulo André acabaram vencendo batalhas judicias contra São Paulo e Corinthians, respectivamente, e tiveram reconhecidos direitos que vinham sendo negados aos atletas, como adicional por trabalho noturno e aos domingos. A decisão sobre o caso de Maicon ainda não é definitiva. Os clubes começaram a se manifestar. O Corinthians enviou pedido à CBF e à FPF ameaçando não jogar aos domingos e à noite. Não se assuste.

Claro que a atitude do clube é política, é para marcar posicionamento em uma questão importante. Se o Corinthians não entrar em campo em partida prevista – seja lá qual dia e horário for – ele perderá por W.O e sofrerá todas as punições tipificadas. E, mais, não existe a menor possibilidade de não haver mais jogos aos domingos, feriados ou à noite. O que se discute é o pagamento ou não para o atleta por atuar nesses dias.

É preciso entender os argumentos dos dois lados, e o que pode acontecer. A discussão é boa, com bons argumentos dos dois lados, e, dependendo do posicionamento do Tribunal Superior do Trabalho, pode mudar a relação jurídica do atleta com o clube. E, como quase tudo no Direito, a questão é interpretativa. “A jurisprudência oscila no sentido de não caber o adicional noturno. O mesmo para o descanso aos domingos. Mas não é uma decisão pacificada, razão pela qual sujeita a entendimento contrário, como é o caso. Esse tipo de ação costuma ser discutido até o Tribunal Superior do Trabalho.

Só aí efetivamente haverá uma posição jurisprudencial mais definida. Então, nada vinculativo nem para um entendimento, nem para o outro”, analisa o Juiz do Trabalho Titular da 13ª Vara do Trabalho Ricardo Miguel. Importante sempre reforçar que o atleta é um profissional do esporte. O jogador de futebol é um empregado do clube. Ele exerce uma atividade com algumas especificidades, daí a importância da relação ser regida por uma lei própria, a Lei 9615/98, a Lei Pelé. Ou seja, aplica-se a Lei Pelé na relação de emprego, e de forma subsidiária, naqueles pontos em que ela for omissa, a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).

Vamos aos argumentos dos dois lados. Aqueles que defendem o direito dos atletas a essas verbas, dizem que a redação da Lei Pelé é não é clara quanto ao adicional noturno. Diante disso, entendem que a Lei Pelé abriria espaço para aplicação da CLT ( que regula as relações de emprego de todos trabalhadores), no que diz respeito ao pagamento de adicionais por trabalho noturno (cujo texto prevê o famoso adicional de, no mínimo, 20%) ou aos domingos. Além disso, reforçam o dispositivo constitucional do artigo 7º , IX, da Constituição Federal, que diz:

– Art. 7º : São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: IX – remuneração do trabalho noturno superior à do diurno; Ou seja, sendo dispositivo constitucional, qualquer dispositivo em outra lei seria inconstitucional. Já os que entendem que o atleta não tem direito a receber esses adicionais, reforçam a especificidade da profissão. Tanto que a atividade do atleta tem legislação própria, a Lei Pelé.Essa mesma Lei garante aos atletas alguns benefícios que outras categorias não tem, como o previsto no artigo 28, parágrafo 4.º, inciso III, é fala dos “acréscimos remuneratórios”, devidos justamente pela participação em partidas, além de concentrações, viagens e pré temporada. Além da “cláusula compensatória”, uma multa que o clube deve pagar ao atleta em caso de rescisão contratual, além das verbas rescisórias previstas na CLT.

É verdade que a profissão de atleta tem suas peculiaridades, tanto que o contrato dele com o clube é chamado de Contrato Especial de Trabalho Desportivo. Diferentemente de um vigia, que trabalha de dia ou à noite, ou de um jornalista que pode trabalhar só de dia, enquanto um colega trabalha à noite, o exercício profissional do atleta culturalmente exige que se trabalhe nesses horários e dias, como domingos e feriados. É quando o público, de folga ou tendo terminado sua jornada de trabalho, pode assistir ao jogo e alimentar a indústria do futebol.

Agora, também acho que a Lei permite essa discussão. E, sempre fundamental destacar, o foro para se discutir essas questões é a Justiça. Quando alguém acha que tem Direito a receber algo, ele precisa perguntar para a autoridade competente. A situação é complicada. O TST ainda não se manifestou, e é ele que vai dar uma segurança jurídica necessária para os contratos dos atletas, para clubes e atletas. A tendência ainda é pelo não pagamento. É o que se tem visto na maioria das decisões dos Tribunais.

Mas, avançando essa tendência recente de reconhecer esses direitos, ou os clubes passam a pagar, ou precisam provocar um grande diálogo com os atletas, e entrar em um acerto coletivo, como autoriza a legislação. Esse seria o único caminho possível, já que não se pode imaginar futebol sem os domingos ou as noites de bola rolando. Nenhum atleta, tenho certeza, jamais imaginou isso também.

Aqui, a opinião de alguns especialistas: – Martinho Miranda, procurador de Justiça: “O Contrato dos atletas é um contrato peculiar. Não por acaso a Lei nº 9.615 diz que o contrato que o jogador celebra com o clube é denominado “contrato especial de trabalho desportivo” Estender adicionais noturnos a atletas é desnaturar a peculiaridade do seu trabalho. Como sublinha o art. 113 do Código Civil os negócios jurídicos devem ser interpretados em conformidade “com os usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio” e todos nós sabemos que é da natureza da atividade do jogador profissional que ele jogue à noite.”

– Luciane Adam, adovada trabalhista :” Muito embora o contrato de trabalho do atleta tenha tratamento específico na legislação, há direitos garantidos pela Constituição Federal e também pela CLT (uma vez que esta tem aplicação subsidiária aos contratos de trabalho dos atletas). Tanto isso é verdade que vários empregadores de atleta pretenderam, neste momento de pandemia, a aplicação do artigo 503 da CLT. Dessa forma, cabe aos empregadores se adequarem à legislação vigente, organizando a rotina de trabalho de acordo com as previsões aplicáveis aos seus empregados e realizando os pagamentos respectivos”.

– Domingos Zainagui, advogado trabalhista: ” A atividade do atleta profissional de futebol traz suas próprias peculiaridades, fazendo que algumas normas da legislação comum lhe sejam aplicáveis e outras não. E é nesta última que se encaixa a possibilidade ou não de se aplicar ao jogador de futebol o adicional noturno previsto na CLT. Conclui-se, portanto, que o adicional de 20% previsto na CLT não tem aplicação à atividade do atleta profissional de futebol, uma vez que não há previsão na Lei n. 9.615/98, e, ainda, pelo fato de ser uma atividade sui generis, não podendo, neste particular, ser equiparada a uma atividade normal de trabalho”

– Theotônio Chermont, advogado especializado em direito esportivo: “O tema é controvertido. Já participei de debates e vejo uma questão passional que envolve a cultura do futebol brasileiro. Muitos entendem que os atletas auferem salários astronomicos e, portanto, não fazem jus a mais nenhum benefício legal. Completamente equivocada tal premissa, pois a lei trabalhista não permite pagamento complessivo (salário englobando outras verbas). Muitos ficam indignados com pedidos de horas extras e adicional noturno por parte de atletas, como se fosse algo absurdo. Ao contrário. Há expressa previsão legal na CF/88, de hierarquia superior às demais leis.

Discordo da afirmação de que a concentração não se caracteriza como tempo à disposição. É irrelevante ser particularidade da profissão. Outras profissões tem particularidades e nem por isso estão desobrigadas de pagar os direitos legitimos. Fato é que o atleta fica à disposição do clube nas concentrações, tal como em pré temporada, seguindo determinações. Não está em casa ou no lazer, mas sujeito ao controle geral do clube. Porque razão não aplicar o art. 4º da CLT? Se fosse dado a ele a opção de se concentrar em casa poderíamos afastar essa tese.

O adicional noturno independe do esporte ser atividade do interesse geral (há muitas outras até mais relevantes) ou haver terceiros que o regulam em horários de sua conveniência. Novamente, temos que nos ater ao texto legal. Há previsão de pagamento do adicional noturno para atividades que ocorram a partir das 22 hs. Não é lei que tem que se adaptar aos clubes, mas sim o contrário, como aliás ocorre nas demais atividades. Se não pretendem pagar o adicional, que negociem com os terceiros horários mais cedo para realização das partidas.

O preceito constitucional é claro ao dispor que o limite de 8 horas diárias e 44 semanais é direito de todos os trabalhadores urbanos e rurais, não excepcionando a aplicação desta regra aos atletas. Inclusive, a Constituição faculta a compensação de horários e a redução de jornada, mediante acordo ou convenção coletiva, mas sem permitir o extrapolação. Porque nunca pensaram em utilizar desses mecanismos?

O adicional previsto na CLT foi confirmado posteriormente pela Constituição Federal quando, em seu artigo 7o, inciso IX, fixou que a remuneração do trabalho noturno deveria ser superior a do diurno. O trabalho noturno priva o atleta do convívio com a família, e também do sono, sendo mais penoso e causador de maior esgotamento do que o praticado durante o dia.

A redação da Lei Pelé na exclusão desses direitos é mal redigida. Vou além. Os incisos I, II e III do parágrafo 4º do art. 28 da Lei Pelé colidem com as normas de proteção a fisiologia do atleta com as normas constitucionais. É sabido que foi costurada ao longo de décadas, muitas vezes sem a necessária discussão a respeito. O resultado é essa celeuma.”

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