O gosto da lentilha do réveillon ainda habitava nossas papilas gustativas quando fomos bombardeados por dois petardos de uma vez só: os chineses a requisitarem o retorno imediato de Hernanes ao Oriente e Lucas Pratto alegando saudades da filha para pedir transferência para o River Plate. Como assim, rapaz, o ano nem começou direito e eu já me vejo obrigado a revisitar minhas angústias? Pra que eu pulei as tais sete ondinhas se na primeira semana já tomei dois sopapos no meio da fuça assim?

Evidentemente, o pessimismo se instaurou – afinal temos Leco, o desmancha-prazeres, e nossa orelha sempre fica em riste com qualquer movimento de saída. Os dois casos, no entanto, devem ser analisados isoladamente. É preciso lembrar que o Hebei Fortune tinha essa prerrogativa – até então desconhecida do público – prevista em contrato, e que o São Paulo teria de desembolsar uma fábula de dinheiro para comprar Hernanes e outra maior ainda para cobrir todo seu multimilionário salário, o que era humana, realística, financeira e logicamente inviável. Como dói dar adeus a um ídolo.

É necessário reforçar também que Lucas Pratto – capitão e referência-mor do plantel após as saídas de Lugano e Hernanes – não poderia ser mantido em cativeiro, a fórceps no Morumbi. Por outro lado, convém também lembrar que o argentino tinha um contrato, assinado há menos de um ano, com prazo definido por ele próprio, e que há menos de um mês, seu discurso era outro: fazia questão de garantir sua permanência e seu absoluto engajamento com o projeto de um 2018 melhor para o São Paulo. Melhor ainda: demonstrava plena ciência de que deveu um bom futebol em campo, mas se mostrava grato pela confiança irrestrita do torcedor e da comissão técnica, e tinha ganas de retribuir. Tinha, no pretérito. Bastou uma sondagem dos Millonários para a situação mudar da cachaça para o vinho.

Em menos de 24 horas, o São Paulo deu adeus a dois pilares do elenco. Lideranças dentro e fora das quatro linhas que nem tiveram tempo de trabalhar com a recém-chegada dupla Raí/Rocha, e que eram cruciais no planejamento de um 2018 menos catastrófico do que o ano que se foi. Enquanto isso, no lustre do castelo, Cueva tomou a liberdade de estender suas férias e se atrasou em uma semana para a reapresentação do elenco, alegando compromissos publicitários no Peru. Prioridades, né amigo?

O torcedor suspira resignado: a essa altura, a gente já deveria estar acostumado a fazer aquilo que, em dado momento desta década, os sertanejos universitários definiram como praticar o desapego. Temos inclusive exemplos vivos de rivais que dividem o mesmo CEP conosco que cansaram de se magoar após colocarem o carro na frente dos bois e chamarem de ídolos alguns bons jogadores que simplesmente não demonstraram um miligrama de interesse em marcarem seus nomes na história do clube.

Faz parte do show, a vida segue. Mas nem tudo são lamentações, afinal chegaram alguns mais que necessários reforços. Após excelentes temporadas, Hudson e Reinaldo cruzam o portão do CCT da Barra Funda valorizados. Vejo as cornetas ressoando e, de bate-pronto, me questiono: oras, não é pra isso que servem os empréstimos? Queríamos que eles fossem mal? Preferíamos mesmo, sei lá, Matheus Reis e Artur ocupando seus lugares no plantel? Há por aí no futebol brasileiro tantos jogadores dessas posições que fizeram melhor papel em 2017 e estivessem dando sopa no mercado? Se sim, não tenho notícia.

Veio Jean, o goleiro-promessa do Bahia, de boa temporada, mas de tenebroso desempenho no último jogo do ano passado, justo contra seu futuro clube, diante da torcida que em breve seria a sua. A missão é clara: agarrar a titularidade de um time que teve três arqueiros se revezando em 2017 assombrados pelo fantasma de Rogério Ceni. Teremos estabilidade e um goleiro que realmente sabe sair com os pés, finalmente? E de quebra, um futuro cobrador de faltas, será?

Pouco depois, os boatos se confirmaram e o flerte antigo virou relacionamento sério: Diego Souza, o irmão melhor layoutado de Cauã Reymond, foi anunciado por R$ 10 milhões. Os pontos contrários da contratação foram amplamente debatidos em todas as 9.139 mesas redondas esportivas diárias do país: “Ele nunca foi centroavante em clube algum”, “já tem 32 anos”, “é caro e marrento demais, duvido que será uma boa liderança”, “chegou com alguns anos de atraso”, “um jogador lento reforçando um time lento”, “o Sport quase caiu”, “vamos para os nossos comerciais e já já voltamos com o Bate Bola 34, edição brunch” etc.

Por outro lado, os prós também merecem ser colocados em pauta. Versátil, Diego oferece diversas opções táticas a Dorival, que pode aproveitá-lo em quase todas as funções ofensivas de sua prancheta. No radar de Tite, o veterano não tem razão alguma para se acomodar – ao menos até o meio do ano. Decisivo e criativo, espera-se que o novo camisa 9 represente um desafogo da cuevadependência que tanto mal fez à equipe (e ao próprio peruano) na última temporada. A liderança mais importante que Diego Souza pode dar ao São Paulo é técnica, dentro das quatro linhas, em momentos de adversidade. Não esperemos dele discursos motivacionais, declarações de amor ou uma postura de relações públicas frente às câmeras.

Em seguida, foi a vez de Anderson Martins – recém-liberto das amarras de Eurico Miranda, o Nero simbólico de São Januário – ser apresentado na Barra Funda. Aos 30 anos, o excelente zagueiro chega consciente de que seu status para a torcida seria outro se suas passagens por grandes clubes (duas pelo Vasco e uma pelo Corinthians) não tivessem sido tão curtas. Será que agora o defensor cearense criará raízes e será finalmente enxergado como um zagueiraço? Nota-se que sua contratação foi de oportunidade, afinal o São Paulo já possui dois titulares absolutos na zaga (e nenhum reserva confiável, é verdade).

Os questionamentos surgem, inevitavelmente: Rodrigo Caio será aproveitado como volante ou será negociado nessa janela? Dorival finalmente se renderá aos encantos dos 3 zagueiros, essa tradição tricolor que vira e mexe dá as caras pela Barra Funda? Acho improvável. Anderson será banco, mesmo com um salário bastante elevado, um talento considerável e um currículo respeitável? Será que a permanência de Arboleda, possivelmente o maior acerto de 2017, está sob risco? Seria terrível se isso acontecesse. Que o professor funda a cuca para acomodar os 3 zagueiros na equipe titular.

Novelas/leilões por Gustavo Scarpa à parte, outro “reforço” que não deve ser esquecido foi a contratação em definitivo de Jucilei, por um preço bem mais acessível do que poderíamos prever inicialmente. É bem verdade que Juça oscilou um bocado na temporada de empréstimo: demorou para entrar em forma, ganhou a vaga, foi bem, foi mal, retornou muito bem em algumas partidas, depois caiu novamente… O fato é que o volante saxofonista, atleta bem acima da média do futebol brasileiro, pode e deve render muito mais em 2018.

O semestre anterior, por mais turbulento que tenha sido, serviu para estabelecer peças como Militão, Arboleda, Petros e Marcos Guilherme como nomes importantes do plantel. Serviu também para dar sobrevida a Sidão, o nosso René Higuita: referência positiva no vestiário, jogador bastante útil, mas um goleiro tecnicamente muito questionável. Serviu para que Rodrigo Caio mais uma vez desse a cara a tapa e crescesse de produção no momento mais duro da temporada, embora raramente seja reconhecido por isso. Serviu para que um operário como Edimar mostrasse que o arroz com feijão não se dispensa (mas não custava colocar algum tempero, né?).

Cotia segue abastecendo o profissional do São Paulo, que conta com 16 crias da casa em seu elenco, diversas delas com idade para estarem disputando a Copinha. Com a deserção de Pratto, crescem as chances de Brenner ser usado com maior frequência desde já. O torcedor anseia por ver o maior artilheiro dos últimos tempos da base visitando os barbantes dos goleiros país afora e não sendo vendido por alguns caraminguás trazidos por Giuliano Bertolucci depois de uns meses para algum Wolverhampton da vida. Trata-se, claro, da maior promessa tricolor em tempos, mas não da única.

Diante do São Bento, na estreia do Paulista, Dorival Júnior escalou um time quase C, promovendo diversos debutes de garotos na equipe profissional. É preciso reconhecer que Rony cochilou no primeiro gol, após Maicosuel ser cortado feito um aspirante; o capitão Araruna teve atuação simplesmente imperceptível e Junior Tavares não deu nenhuma amostra dos predicados que fazem o treinador acreditar que ele pode render como ponta. Com um time estático, o São Paulo reeditou o velho problema do 2o semestre de 2017: a lentidão e ausência de nomes para puxar contra-ataques. Somada a isso, uma flagrante incapacidade de prender a bola também ajudou a resultar num jogo chocho.

A criação de jogadas tricolor ficou basicamente por conta de Paulo Henrique, o meia que em duas ocasiões mostrou suas qualidades e levou perigo à meta dos donos da casa. Na segunda etapa, as entradas de Marquinhos Cipriano e Brenner não alteraram o quadro infértil de uma equipe que deve usar os primeiros jogos do arrastado Paulistão para dar cancha aos meninos de Cotia, enquanto prepara lentamente nomes como Diego Souza, Petros, Cueva, Militão e Jucilei para a parte realmente crítica da temporada que se inicia.

A derrota por 2×0 não deve ser ignorada, como também não deve ser supervalorizada. A única observação a ser feita tão cedo (e num jogo com diversos reservas dos reservas por um torneio de baixa relevância em época de pré-temporada) é que a ideia de jogo de Dorival não deu nada certo: com Tavares e Maicosuel nas pontas, a lentidão é (pre)visível, e de nada adianta o técnico diagnosticar que nos falta quem execute o contra-ataque. Há poucas dúvidas de que garotos como Cipriano e Caíque, acostumados à função de ponta, velozes e fortes no um-contra-um, podem render mais frutos por ali se forem testados.

Frente ao Novorizontino, hoje, no Morumbi, alguns dos “titulares” devem estrear. É mais uma chance para Dorival Júnior fazer seu misto de 4-3-3 e 4-1-4-1 versão 2018 funcionar. Mesmo em tragédias como as saídas de Pratto e Hernanes, é possível enxergar possíveis alternativas e benefícios colaterais para o futuro. Pode ser esta a grande deixa para que Shaylon, atuando centralizado e com mais frequência, finalmente desabroche e coloque todo seu refinamento técnico a serviço da equipe. Contudo, para ser alguém no profissional, não basta ter apenas qualidades com a bola: é preciso ter intensidade, entender bem o jogo sem a posse, negar e disputar espaços com o adversário e saber aparecer livre com frequência, dando fluência coletiva às jogadas. O mesmo vale para Lucas Fernandes, que teve oportunidades e não correspondeu como esperado em 2017.

E o que dizer da perspectiva (otimista, claro) de Brenner modernizar a forma com que enxergamos um camisa 9 por aqui? Quem falou que todo artilheiro precisa ser corpulento e ter mais de 1,85m? Palhinha que o diga. Aubameyang, Gabriel Jesus e tantos outros também não me deixam mentir – há formas e mais formas de se conquistar e disputar espaços na área. Com a vinda de Diego Souza e as saídas de Pratto e Gilberto, nossa grande joia da base deve ganhar relevância no plantel. Sem a injusta pressão de levar um ataque nas costas sozinho ou de dar resultados imediatos, é importante que o garoto receba preciosos minutos de jogo nesse Paulista, que tenha confiança para tentar e errar e tentar de novo. E se há uma boa notícia para o torcedor são-paulino nesse início de ano aparentemente tão desanimador, é o fato de Dorival ser, de longe, o maior revelador de jovens talentos do Brasil nos últimos 10 anos.

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PS 2: A quem estiver se perguntando por que a parte 3 (e final) do Especial Diego Lugano ainda não saiu, cabe um esclarecimento: ela vai sair, e muito em breve. Ocorre que o blogueiro já escreveu e reescreveu o texto mais de 5 vezes, em busca de algo que faça jus à figura de Lugano.

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