O 3×1, um placar magrinho (para os padrões da temporada), pode até não sugerir isso, mas nesta quarta, diante do ABC-RN no Morumbi, o São Paulo realizou sua mais primorosa partida em 2017.

Certos termos no esporte, como na vida, já começaram a ficar desgastados. “Intensidade” é um deles. Não raro, vemos light users dos horóscopos de jornal usando e abusando de lugares comuns para se darem bem na arte do xaveco e do engambelamento: “Eu, por ser de Capricórnio, sou muito intenso. E você, leonina, é a mesma coisa, né? Mega intensa! A gente super combina. Que tal se a gente se beijasse?” (N.R.: diálogo fictício que pode ou não ter sido utilizado com êxito por amigos/as do blogueiro). Da mesma forma, no futebol atual quase tudo se resume à tal da intensidade, de maneira quase acrítica, e o termo paulatinamente vai sendo desacreditado e esvaziado de sentido, enquanto ganha a simples conotação de correria e raça, em vez de se referir à coordenação de movimentos de retomada rápida de bola e ritmo alto, como originalmente significa.

O fato é que mesmo os capricornianos mais flerteiros devem reconhecer que isso, a tal da intensidade, é um princípio inegociável do São Paulo da dupla Rogério Ceni-Michael Beale. As estatísticas, se jogadas no ar desamarradas de um contexto, podem ser enganosas. Contudo, se postas em perspectiva, servem para amparar argumentos lógicos de quem efetivamente se dedica a assistir e interpretar as partidas enquanto deixa seus dedos alaranjados de tanto comer salgadinhos com quantidades insalubres de sódio e degusta cervejas de qualidade questionável.

Contra o ABC, o jogo começou com um inevitável deja vu para os tricolores um pouco mais antigos. Quando, nos primeiros 15 minutos, o volante Jardel caçou Cueva com três faltas desleais (sendo admoestado com o cartão amarelo apenas na terceira), é bem verdade que muitos torcedores cogitaram se tratar de um misterioso flashmob de relançamento de O Clube da Luta. Depois, veio à mente o doloroso confronto com o Atlético-PR, pelas quartas-de-final do Brasileiro de 2001. Naquela noite, o brucutu Cocito aplicou o mesmo tipo de marcação porradeira ao então garoto Kaká, até conseguir tirá-lo de campo lesionado e debulhado em pranto. O fato de Geninho ser o treinador tanto daquela equipe do Furacão de antanho como desta do ABC-RN aparece apenas como uma curiosa coincidência.

Com a bola em jogo, o que se viu foi um massacre. O São Paulo já havia feito algumas apresentações muito boas no ano, como contra Ponte, Santos e Santo André, mas jamais demonstrou ser tão senhor da partida como nessa quarta – diante de um adversário extremamente frágil, é verdade. E aí entram os números: nos primeiros 10 minutos, o Tricolor teve 84,2% de posse de bola (ao fim da partida, esse dado cairia para não menos impressionantes 67%). O domínio poderia até eventualmente ser ilusório e infértil, mas as 20 finalizações (11 certas) ao longo dos 90 minutos comprovam que muitas chances foram criadas. O São Paulo foi uma equipe vertical o tempo todo.

Para isso, não precisamos nem recorrer às estatísticas. Bolas na trave, boas defesas do goleiro Edson, chutes salvos em cima da linha, erros primários de conclusão… o gol era uma questão de tempo e ele veio aos 27 minutos, com Luiz Araújo, cada vez mais afirmado como o grande nome da temporada. Aqui cabe observar o desenho da jogada: Pratto recuou, atraiu os zagueiros potiguares consigo para fora da área e Cueva infiltrou no latifúndio que se abriu. Cícero, que tinha a bola dominada sem ser acossado na intermediária, enxergou a brecha e lançou o peruano, que teve dificuldades para matar a redonda. Atento, o cleptomaníaco Araújo roubou-lhe a pelota para limpar o goleiro e fuzilar de direita. Em um intervalo de 5 segundos, várias sinapses, muita inteligência nas movimentações e ideias saindo do papel direto para o campo. Esboço interessante de uma equipe que penou pelo repertório paupérrimo de jogadas na maior parte dos últimos anos.

O 1×0 estava muito barato para o time natalense, que seguiu sendo sufocado em seu campo de defesa. O termo da moda (intensidade) torna-se evidente quando se nota que o ABC deu 8 lançamentos certos (contra 10 do São Paulo) e espantosos 37 errados (contra 6 da agremiação tricolor). No português mais claro: o time de Rogério Ceni obrigou a equipe de Geninho a rifar quase 40 bolas, devolvendo-lhe a posse. Isso é ser agressivo, e quem assistiu jogar a equipe comandada por Ricardo Gomes no segundo semestre de 2016 há de se lembrar de quanta falta essa característica nos fazia quanto tínhamos de tomar as rédeas de uma partida.

Na segunda etapa, a ordem era conseguir mais gols a todo custo e logo no início vimos um padrão se repetir maravilhosamente bem. João Schmidt conduziu a bola na intermediária (defensiva, desta vez) e, tal qual um quarterback da NFL, viu a infiltração de Luiz Araújo – mais uma vez o melhor homem em campo – no espaço deixado pelo recuo de Lucas Pratto, que arrastou novamente com ele um zagueiro. O camisa 31 recebeu primoroso lançamento de 35 metros e já driblou o goleiro na matada de bola, tocando-a para o gol vazio e correndo para o abraço. Golaço! O 2×0 era importante, mas tudo que eu conseguia pensar era um misto de “É impressão minha ou esse é um time muito legal de ver jogar?” com “Eu devia ter comprado mais long necks”.

No fim das contas, é isso: gols acabam saindo de uma maneira ou de outra, mas tradicionalmente o São Paulo tem um compromisso bem maior do que a média dos outros times com a estética, a plasticidade do jogo e o modo com que se ganha. Neste clube, convencer é quase tão importante quanto vencer. Isso estava adormecido há um bom tempo no Morumbi, dando lugar a equipes que brigavam por 1×0’s econômicos e que não faziam a menor questão de forçar erros dos adversários. Esse time parece fazer, não por capricho, mas por entender que este é um atalho seguro para as vitórias.

E aí, quando tudo pareciam flores, obviamente veio o balde d’água fria, com mais um gol besta para a nossa conta. Novamente num escanteio, em que o volante Marcio Passos subiu no vão entre Cícero e Breno, que marcaram a bola, e testou para as redes. Por vezes, penso que esses lapsos que já viraram uma mini-tradição do São Paulo de 2017 são uma maneira das mais altas divindades do futebol enviarem um recado a nós: num empolga não, meu filho. Sei que beira o sadismo, mas preciso confessar que estranhamente eu gosto de ver isso acontecendo a essa altura da temporada, como forma de alerta para que nos aperfeiçoemos. Nos jogos grandes, é preciso concentração máxima por 100% do tempo. Temos de desenvolver essa mentalidade, aprendendo com os percalços que ainda não nos causaram prejuízos fatais.

E logo em seguida, Cueva (que teve atuação no máximo mediana para seu nível, mas participou em dois gols) quebrou a linha de marcação do ABC com um passe que achou Thiago Mendes (numa noite extraordinária) pela direita, fugindo pelas costas de Romano. Ele olhou e cruzou para o inspirado Lucas Pratto guardar seu 4o tento com a camisa são-paulina. Todos de cabeça. O 3×1 soava (e era) curto e injusto para tudo o que aquela equipe havia produzido até ali, mas ainda restavam 35 minutos a serem jogados.

E foi então que o São Paulo naturalmente se viu forçado a pensar no seguimento da temporada e dosar suas forças. A busca pelo quarto gol não terminou, mas o caçado Cueva sentiu a coxa esquerda, Luiz Araújo caiu no gramado reclamando de dores e João Schmidt cansou. O trio deu lugar a Wellington Nem, Neílton e Wellington e a tão propalada intensidade diminuiu. Ainda houve chances de ampliar o placar, com Nem e Thiago Mendes, mas ficou por isso mesmo. A margem de dois gols de vantagem parece traiçoeira para atuar num Frasqueirão que certamente estará lotado semana que vem, mas o que deixa o torcedor tricolor aliviado é o fato de este time não renunciar ao jogo em momento algum.

Amanhã, no Allianz Parque, teremos um teste do mais alto nível para essa filosofia de protagonismo. Não nos deixemos carregar pelo EMPOLGOU™ do momento: o Palmeiras é favoritíssimo a tudo o que disputar na temporada e, ainda que acene com a possibilidade de poupar atletas – o que, em tese, transfere a responsabilidade para o lado são-paulino – segue com este status, sobretudo jogando em sua moderna arena. Seja como for, este tem tudo para ser um duelo divertido. Durmo aliviado sabendo que meu time busca a vitória sempre. Agora vou lá comprar umas long necks, afinal, sabe como é, sou geminiano e vivo intensamente.

Fonte: Footstats

Por: Pedro de Luna