Na onda de que o São Paulo de Ceni joga ultra ofensivo, marca muitos gols e sofre também, conheça o treinador que é conhecido como o mais ofensivo do mundo! E não, não é Osorio, nada disso…

“O pequeno Pescara, lanterna do Campeonato Italiano, vinha numa crise que parecia sem fim. O time não vencia um jogo desde setembro do ano passado, vivenciando uma triste série de 23 partidas sem triunfo: 18 derrotas e cinco empates. No dia 17 de fevereiro, o clube anunciou a contratação de um novo técnico, na esperança de que algo mudasse.

Logo no primeiro jogo do treinador, um verdadeiro show: futebol inspirado, festa da torcida, dribles e goleada por 5 a 0, com três gols antes dos 30 do primeiro tempo. Não é à toa que o comandante é conhecido como “o técnico mais ofensivo do mundo”…

Trata-se do tcheco Zdenek Zeman, comandante de 69 anos que já foi chamado pela imprensa italiana de muitas coisas, desde “um gênio tático revolucionário” até “um completo lunático”.

Zeman nunca foi jogador de futebol. Nos final dos anos 60, foi à Itália visitar um tio que era atleta da Juventus e morava lá. Enquanto estava viajando, a União Soviética invadiu a então Tchecoslováquia para tentar barrar as reformas políticas que o secretário Alexander Dubcek tentava implementar. O garoto nunca mais voltou, e ficou morando para sempre na “Bota”. Casou-se com uma italiana, Chiara, teve dois filhos e ganhou cidadania italiana.

Amante e estudioso do futebol, começou sua carreira de treinador em 1974, na base do Palermo. Após alguns anos, assumiu seu primeiro time profissional: o minúsculo Licata, em 1983. Ficou três anos no clube, sendo campeão da Série C2 (a 4ª divisão) em 1984/85. Nos anos seguintes, teve passagens rápidas e de pouco sucesso pelos medianos Parma e Messina, sendo demitido de ambos.

Quando foi contratado em 1989 pelo Foggia, contudo, a Itália conheceu sua genialidade e sua loucura. Jogando num arrojado 4-3-3 extremamente ofensivo, com marcação pressão o tempo todo e linha de impedimento muito avançada, ele levou o time da 3ª para a primeira divisão em três anos, sendo condecorado campeão da Série B em 1990/91.

Sua equipe jogava tão bonito que ficou conhecida como “o milagre de Foggia”.

Zeman, então, se lançou a voos maiores. Após deixar o Foggia, em 1994, comandou grandes times da Itália, como Lazio (1994 a 1997), Roma (1997 a 1999) e Napoli (2000), além do Fenerbahce, da Turquia, rapidamente entre 1999 e 2000.

Nesse tempo, montou equipes espetaculares, que se caracterizaram pelo jogo ofensivo e bonito, sempre fazendo muitos gols, mas também sendo vazadas diversas vezes. Não ganhou títulos, mas inspirou diversos treinadores e criou uma série de novas ideias no campo das táticas. Foi um revolucionário, em uma década dominada pelo 4-4-2 e pelo 4-5-1.

Nos anos 2000, o tcheco passou por diversos times implementando suas ideias “malucas”. Não conquistou troféus em nenhum até chegar ao Pescara, em 2011. Ao fim da temporada, venceu a Série B 2011/12 e levou o time à elite, virando herói e ídolo.

No ano seguinte, voltou à Roma, montando um time “insano”, que tinha Francesco Totti como destaque e jogadores como Daniel Osvaldo, Nico López (hoje no Internacional), Alessandro Florenzi, Mattia Destro, Miralem Pjanic, Michael Bradley e Erik Lamela, além de brasileiros como Marquinho (hoje no Fluminense), Rodrigo Taddei (ex-Palmeiras), Leandro Castán (ex-Corinthians) e Marquinhos (hoje no PSG).

O elenco se destacou pelo futebol bonito e pelos placares elásticos, acabando a Serie Acom 71 gols pró (3º melhor ataque, atrás só de Napoli e Fiorentina) e 56 gols contra (pior que a do rebaixado Palermo, que levou 54). Apesar do jogo vistoso e de partidas espetaculares, o desequilíbrio foi evidente, e a Roma terminou apenas em 8º lugar.

Nos anos seguintes, Zeman teve duas passagens pelo Cagliari e uma pelo Lugano, da Suíça, do qual foi demitido em 2016. Após passar um bom tempo desempregado, voltou ao seu trono em Pescara, reestreando com uma impiedosa goleada por 5 a 0.

Neste domingo, ele volta a campo contra o Chievo, às 11h, para seguir colocando em prática seus planos malucos. Se será chamado de “gênio” ou de “louco”, só o tempo dirá.

  • Como funciona o maluco 4-3-3 de Zeman

Para entender o louco 4-3-3 de Zeman, é preciso entender conhecer a base do esquema.

Ele é montado a partir do “Futebol Total” de Rinus Michels, que encantou o planeta com sua Holanda na Copa do Mundo de 1974, com muitas trocas de posição e correria.

O time começa por um goleiro que joga adiantado, praticamente como um líbero (como fazia Rogério Ceni e como faz hoje Manuel Neuer). Além disso, o arqueiro deve saber usar os dois pés e ajudar a distribuir o início das jogadas, tentando evitar ao máximo o “chutão”.

Em seguida, aparece uma linha de quatro formada por dois laterais rápidos, que defendem e atacam o tempo todo, tentando jogadas de ultrapassagem, além de dois zagueiros fortes no jogo aéreo.

No meio-campo, Zeman exige três jogadores que defendam e ataquem sem parar, que ele descreve como “híbridos”: nem volantes “brucutus”, nem os tradicionais armadores “pensantes”, mas sim atletas que executem bem as duas funções – e que estejam dispostos a correr como loucos o jogo inteiro, já que serão o coração (e pulmão) da equipe.

Por fim, uma linha de três atacantes: um destro que joga pela esquerda, um canhoto que joga pela direita e o bom e velho centroavante “matador”, que possa executar o pivô.

Esse esquema sempre foi usado por Zeman durante sua carreira, produzindo futebol encantador, com muitos gols e alternativas de jogadas, mas também debilidade defensiva. Não à toa, seus times vencem por 5 a 4, 4 a 2 ou 3 a 1 – e quando perdem, raramente é de pouco, o que já lhe fez terminar como pior defesa da temporada várias vezes.

Quem conheceu de perto a “maluquice” do tcheco foi o atacante brasileiro Rafael Bondi, que foi treinado pelo revolucionário na Salernitana, entre 2000 e 2001, na 2ª divisão.

“No time dele, todos atacam: laterais, meias, pontas… Só os zagueiros ficam atrás, e sempre jogando com linha de impedimento alta. Por isso, fatalmente as partidas com o Zeman terminam com muitos gols”, explica Bondi, em entrevista ao ESPN.com.br.

O brasileiro detalha o esquema e revela que existem uma série de “movimentos automáticos” que os atletas devem fazer para se encaixarem no esquema. Se todos executarem o que for pedido, a vitória vem por goleada. Mas se uma peça da engrenagem não funcionar direito, a tragédia também é quase certa.

“Se não fizer o que ele quer, nos mínimos detalhes, você não joga no time dele. Tem que ter um automatismo. Quando um jogador faz um movimento, outro tem que fazer outro, outro tem que fazer outro… Quando você vê, está todo mundo pra frente do meio-campo atacando”, conta.

“Ele joga com os atacantes com os pés invertidos: canhoto na direita, destro na esquerda. Quando o atacante vem pra dentro, ele quer sistematicamente que o meia da parte onde atacante saiu preencha o espaço, o lateral faça o overlap no meio-campista e, do outro lado, o atacante central tem que atacar o espaço entre os dois zagueiros”, detalha.

“Ao mesmo tempo, o meio-campista da outra parte do campo tem que se posicionar entre o zagueiro e o lateral, e o ala deste setor também tem que estar aberto e pronto para receber a bola. Faz as contas aí quantos atletas estão atacando em um lance só (risos)! E para jogar com ele tem que correr muito, mas muito mesmo”, afirma Rafael Bondi.

“Ele sempre falava: ‘Se o Totti corre, vocês tem que correr também!'”, acrescenta.

Além das peculiaridades táticas, Zdenek Zeman também é conhecido por sua personalidade extravagante. Fumante há décadas, ele não larga o cigarro nem na beira do gramado. Raramente sorri, e, quando o faz, geralmente é de maneira irônica.

“Ele é um treinador fechado, não é de muito papo com os jogadores. Costuma manter a calma, às vezes até demais. Quando o time faz gol, na maioria das vezes nem comemora… Mas ele adora brasileiros! Deve ser pela ofensidade do nosso futebol”, revela Rafael.

“Nos treinos, ele sempre ficava andando pelo campo e meditando. Às vezes parecia que era um jardineiro cortando a grama (risos). Quando ele fazia a parte tática, ficava um tempão explicando no quadro, e quem não entendia não jogava de jeito nenhum. Eu, aliás, sofri muito no começo do nosso tempo junto, porque eu era meio ‘anárquico'”, brinca.

Bondi conta que o riso irônico e o humor ácido do tcheco confundem os atletas.

“Teve um dia que fizemos um amistoso e eu machuquei, porque não estava fazendo o que ele queria. Ele me chamou, abriu um sorriso e me deu uma p… bronca: ‘Bondi, você entrou em campo só pra se machucar, não é? Porque pra jogar eu sei que não foi'”, disparou.

“Ele é engraçado, mas de um jeito diferente, porque fala com você sério, mas sorrindo ao mesmo tempo. Aliás, ele ri até quando perde. É muito irônico. De repente, ele te joga a verdade na cara, com um sorriso. Você acha que está te sacaneando, mas é sempre a verdade nua e crua, ainda que seja doída. Ele te diz as piores coisas com um sorriso no rosto”, relata, antes de contar um episódio.

“Teve um jogo que o volante titular se machucou e o substituto era um brasileiro, o Teco. Aí o Teco jogou a semana inteira e no sábado a gente enfrentava o Cagliari. Antes do jogo, ele convocou uma reunião e perguntou: ‘Teco, você lembra todas as jogadas?’, e o Teco na hora: ‘Lembro sim, professor!’. Chegou a hora do jogo e… Ele escalou outro cara! Nossa, o Teco ficou louco (risos). Ele é metódico e doido demais”, relembra Rafael Bondi.

O treinador também é conhecido por destilar ironia contras os jornalistas.

“Tem uma frase dele que é fantástica. O repórter dele chegou e perguntou: ‘Zeman, se seus atacantes atacam, seus meio-campistas atacam e seus zagueiros atacam, o que o outro time faz?’. E ele mandou na lata: ‘Se defende’ (risos)”, sorri o brasileiro.

Durante a carreira toda, Zeman também carregou a fama de não ligar para derrotas, desde que seu time jogue bem. Segundo o brasileiro, isso é meio verdade, meio lenda.

“Ligar, ele liga (se o time perde), porque pode ser mandado embora, mas jogando bem ele já fica bem contente (risos). Na visão dele, se você jogar bem, mais cedo ou mais tarde vai entrosar e acabar ganhando, mesmo que demore um pouco pra acontecer”, afirma.

  • Treinos da antiga, futebol moderno

Além dos esquemas de jogo, Zdenek Zeman também gosta de comandar a preparação física de seu time com uma série de treinos “das antigas”, que em nada lembram os modernos trabalhos feitos com GPS e equipamentos de última geração dos dias de hoje.

“Uma coisa que chama a atenção é que não tem treino de academia. Ele fazia diversas coisas doidas, tipo carregar o companheiro nas costas ou ficar pulando os degraus na arquibancada. E quando fazíamos as corridas, ele ia na frente de bicicleta”, rememora.

“Ele é muito conservador nessas coisas, mas o futebol dele é muito moderno. Aliás, ele é conhecido por ter revolucionado o futebol italiano de um certo ponto de vista”, completa.

Desde que retornou ao Pescara, inclusive, ele já implantou todos esses treinos, especialmente os saltos nas arquibancadas do estádio. O objetivo, segundo o próprio tcheco, é que os atletas esbanjem fôlego na parte final da temporada, como última esperança de escapar de um rebaixamento que já parece decretado há tempos na Serie A.

A missão de livrar o Pescara da queda é muito difícil. Afinal, o time tem só 12 pontos na Serie A e está a 10 pontos do Empoli, primeiro time fora da zona da degola. A aura e as maluquices de Zeman, porém, podem dar um fio de esperança à pequena equipe.

“O fator mental da chegada dele foi muito importante, porque ele exige muito dos jogadores, especialmente dos atacantes, que devem atacar o tempo todo o espaço sem a bola. Esse negócio de jogar só com a bola no pé não existe com o Zeman, e foi exatamente o que o Pescara fez contra o Genoa. Garanto que todos pelo menos vão correr”, finaliza.

ESPN