Quando um homem de 36 anos retornou à academia de Liverpool em janeiro, a partida de outro passou bastante despercebida.

Mas enquanto os flashes se apagavam e Steven Gerrard começou a trabalhar com as equipes juvenis dos Reds, Michael Beale tomou o caminho oposto sobre o Atlântico, trocando um escritório em Merseyside, pelo estádio do Morumbi, em São Paulo.

É o cargo mais recente e mais notável em uma silenciosa carreira meteórica.

Começou no final dos anos 90, quando Beale pagou 32 libras para alugar o salão de sua igreja natal em Bromley, empurrando as cadeiras contra a parede e fixando seus valores em 4 libras por criança para aulas de futsal. “Apenas três apareceram no início. Não foi o maior plano de negócios, mas cresceu “, diz Beale ao The Set Pieces.

Cresceu o suficiente para que ele fosse notado  pelo Chelsea, que o contratou em 2002 em regime de desenvolvimento, trabalhando com crianças de 6 a 9 anos da cidade. Depois de dez anos crescendo através das escalas de treinamento de jovens dos Blues, ele então se mudou para Liverpool, inicialmente para treinar o time Sub-16.

Trent Alexander-Arnold, Ben Woodburn e Harry Wilson foram alguns dos jovens que ele revelou em Liverpool. Ruben Loftus-Cheek, Dominic Solanke, Tammy Abraham e Lewis Baker estavam entre seus garotos no Chelsea. Duas gerações estelares em dois clubes diferentes.

Beale poderia ter ficado no Liverpool. Alternativamente seu CV exigiria consideração em qualquer outro clube da Premier League. Mas, em vez disso, ele trocou seu cargo de treinador do Sub-23 dos Reds, para se tornar auxiliar técnico do São Paulo.

“Quando essa oportunidade chegou, provavelmente veio um pouco cedo demais, para ser sincero”, diz Beale. “Mas, como eu digo aos meus jogadores, esforce-se para ser o melhor que você pode ser. Por que eu não iria me dar este desafio para vir aqui e ser respeitado? Era algo que eu tinha que fazer.”

O convite veio de Rogerio Ceni. Esse cara de 44 anos é uma instituição do São Paulo – um jogador que conquistou 18 troféus, incluindo duas Copa Libertadores, ao longo de 23 temporadas jogando pelo mesmo clube. Ganhou mais fama que Chilavert, com 131 gols na carreira.

No ano passado, enquanto estava na Inglaterra em um curso de treinamento da Associação de Futebol, Ceni visitou vários clubes da Premier League e observou uma das sessões de Beale no Liverpool.

“Passamos duas ou três horas conversando depois. Ele perguntou qual era o meu sonho, se eu queria ser técnico. Eu disse que não tinha certeza – eu amo o desenvolvimento juvenil – mas eu adoraria trabalhar fora da Inglaterra um dia e aprender uma língua e uma cultura diferente “, explica Beale.

 

 

 

“Ele se lembrou disso e seis ou sete semanas depois ele me ligou para dizer que estava conseguindo um emprego e perguntou se eu estaria interessado em me juntar a ele.

“Voei para São Paulo para conversar a respeito e vi o estádio de 67 mil lugares, a paixão dos torcedores, a academia e a qualidade dos jogadores que tínhamos. Eu só pensei, por que não? Me pegou completamente fora da minha zona de conforto. ”

Para as primeiras semanas de Beale na cidade, ele também foi sem sua família. Sua esposa e seus dois filhos ficaram em Merseyside, enquanto ele arranjava uma casa para eles em um dos subúrbios mais da cidade.

Enquanto isso, vivendo em um apartamento com o novo supervisor de futebol do clube, o francês Charles Hembert, Beale tem lutado em torno de supermercados desconhecidos de São Paulo e estradas entupidas, e se acostumando com a cultura brasileira de treinamento.

De certa forma, é a encarnação do ambiente que Jurgen Klopp vem tentando cultivar em Liverpool.

De volta a Merseyside, o alemão introduziu um “treinamento cerebral” para afastar os jovens jogadores de seus celulares, a fim de reaproximar os companheiros de equipe. Os salários dos adolescentes da Academia agora são limitados – por volta de 40.000 libras – para mantê-los famintos. Ambos vêm como um padrão cultural em São Paulo.

“Os jovens jogadores aqui não podem ganhar tanto dinheiro que eles pensam que são reis. Há menos dessa cultura no Brasil “, acrescenta Beale. “Muitos dos rapazes sul-americanos são muito claros sobre o que eles querem alcançar na vida, seja jogando na Premier League ou La Liga. Eles são muito motivados e dedicados.

“As crianças nas academias inglesas têm que se certificar que querem sair da academia e entrar na primeira equipe pela conquista, não pelas premiações. As casas e os carros – isso vem com o sucesso, mas não devem dirigi-lo.

“As pessoas aqui são muito descontraídas, eles são muito felizes juntos. Durantes as refeições na Inglaterra, todos usam seus celulares. No Brasil eles não são assim. Eles não comem suas refeições rapidamente. Eles apreciam a companhia uns dos outros.

“Os jogadores tratam treinadores muito respeitosamente, como professores, existe mais feedback dos jogadores para treinadores.”

Esse perfil mais colaborativo e a filosofia pessoal de Beale colocaram um alto necessidade pela melhoria de seu português. Ele também sabe o quão duro as batidas podem ser como um jovem jogador, tendo visto sua própria carreira de jogador desaparecer

“Eu me orgulho no relacionamento um para um. Você tem que entender os jogadores – o que os faz correr, os faz sorrir e querer jogar – antes de pedir que o entendam.

“Você pode usar PowerPoint, traduções, mas não há nenhum substituto para falar o idioma fluentemente. Eu posso dizer ‘parar’, ‘correr’, ‘trabalhar duro’, ‘virar’, ‘pressionar’, ‘tocar’, ‘um-contra-um’ – mas eu não posso falar como estamos falando agora. Todos os dias são como três dias porque estou pensando em uma segunda língua. ”

Até agora, apesar da barreira linguística, tudo está indo bem. Beale já venceu seu primeiro torneio amistoso, a Copa da Flórida, com o São Paulo batendo os rivais da cidade, o Corinthians, em uma nervosa final com dois cartões vermelhos.

Mas se a feroz rivalidade local, engarrafamentos e vida selvagem exótica em torno do treino de São Paulo confirmaram alguns dos estereótipos da cidade, outros foram confundidos. Na estimativa de Beale, as instalações da academia do São Paulo são melhores que as do Liverpool e estariam “talvez no top 10 da Europa”.

Nem é um dado que, levantado em algum coquetel clichê de sol, samba e desigualdade social, os mais brilhantes do Brasil são melhores do que seus homólogos ingleses.

“O lado técnico combina bem. Existem diferenças em como o jogo é jogado. Na Inglaterra eles querem rápido, enérgico, comprometido, enquanto que aqui é um pouco mais lento, tático e sobre iniciativa e invenção “, continua Beale.

“Mas os melhores jogadores – como Harry Wilson, Trent Alexander-Arnold e Ben Woodburn – podem jogar aqui com certeza. Acho que falta um pouco de visão e crença na Inglaterra, às vezes. Nós pensamos que todos são melhores. Precisamos de mais treinadores que tenham estado lá fora e possam voltar e dizer às crianças que elas conseguem. ”

A ambição de longo prazo para Beale é seguir uma trajetória de carreira semelhante ao ex-colega do Chelsea, Paul Clement, mostrando-se capaz no exterior antes de finalmente retornar à Inglaterra como um técnico conceituado e, em seguida, talvez voltar para o desenvolvimento juvenil no final de sua carreira.

A curto prazo, ele não está dando certeza de nada.

O status de herói de Ceni com os fãs facilitou sua contratação para ser o técnico, incluindo Beale e Hembert. O treinador, junto à experiência dos dois, conseguiram persuadir o atacante de 20 anos, Luiz Araujo, que recebeu uma oferta de 5,6 milhões de libras do Lille,que era o caminho errado para ele ir para a Europa.

Mas se os resultados se transformarem, Beale sabe que um estrangeiro em seu primeiro trabalho em equipe grande também pode ser o primeiro fracasso. “Quanto mais perto você estiver de sua primeira equipe no futebol, mais perto você estará de pegar suas coisas e ir embora”, diz ele.

“Passei 10 anos no Chelsea e 5 no Liverpool – dois clubes fantásticos. Espero que isso dure muito tempo, mas quem sabe? O futebol é muito inconstante.

“Enquanto isso, eu e minha família vamos tratar esse momento como uma aventura.”

De um corredor empoeirado da igreja em Kent, no sudeste da Inglaterra, para o calor branco da elite do futebol brasileiro, já tem sido um ótimo passeio.

Por:  The Set Piece