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A perfeição não existe. É fato. Porém, há algo bem próximo dela. Melhor dizendo: há um momento da vida em que ela, essa “quase perfeição”, caminha entre nós e nos atinge de um modo tão simples e comum como se fosse brisa.

Algo de uma simplicidade monumental!

O incrível é que todos nós já a tivemos. E fica mais espetacular ao se dar conta de que essa “quase perfeição” ainda está diante de nós, mas não mais dentro da gente. Filosofia barata? Nada. É uma verdade quase dogmática, basta prestar bem atenção…

A “quase perfeição” era quando olhávamos o mundo de baixo para cima. E quando olhávamos para cima e víamos gente onde hoje há apenas saudade. Era quando todo e qualquer espaço de quatro metros quadrados era “um alqueire” de terras. Quando o teto sobre nossas cabeças parecia ser tão alto quanto o céu, embora estivesse sob o alcance de qualquer um que tivesse uma cadeira para subir.

Essa “quase perfeição” era quando a majestade o sabiá era hit e não apenas e tão somente o mais belo dos pássaros cantantes. Era quando a bola de meia era “a oficial”. Era quando o “fazer para ter” era a lei, dava status, e o “ter”, simplesmente, era muito menos divertido, era um demérito até. “Fulano comprou o dele. Eu fiz o meu!”… Um orgulho! Era quando havia a “turminha da rua”. Era quando a rua era o mais belo dos estádios, uma espécie de Sarriá imaginário que explodia com gol de Serginho e desclassificava a Itália de Paolo Rossi, onde era possível mudar o rumo da história!

Essa “quase perfeição” era quando não havia relógio, mas apenas “claro” e “escuro”, onde pelas bandas de Ribeirão Preto se ouvia no fim do dia, começo de noite, sempre a mesma ladainha: “Raí, vem pra dentro que já está escuro”. “Já tô indo, mãe!”…

A “quase perfeição” era quando dava para sair descalço no quintal e poder sentir o cheiro de terra molhada quando a chuva começava a cair. Era nadar na enxurrada da rua. Era dançar na chuva sem medo de ser chamado de louco, de ficar doente ou muito menos de ser ridículo. Aliás, ridículo é nunca ter feito isso!

E era a tal “quase perfeição” que sorria para a gente quando, de baixo para cima, esperávamos, com as mãos na borda da mesa e na ponta dos pés, o abrir da lata de goiabada para comer com o queijo que vinha do sítio para a feira e da feira para aquela mesma mesa, inexplicavelmente, como num toque de mágica.

A “quase perfeição” era a trinca “banho quente, enxugamento e pentear de cabelo com cafuné” da mãe todas as noites. Era o “cavalinho” no cangote do pai. Era a autorização do avô, permissivo, para a “arte” e a intercessão da avó, compreensiva, ante o pai e a mãe para abrandar a punição.

Era, também, viver caçando uma encrenca por dia e depois, por ser coisa de criança, “perdoar e ser perdoado, compreender e ser compreendido, amar e ser amado.” Um tempo onde o amor era algo simples, puro e não vinculado a uma série de questões complexas, quase quânticas, criadas pelos adultos que, parecendo discípulos do “velho guerreiro”, vieram para confundir e não para explicar… Os grandes é que complicam tudo, é verdade. Possuem uma espécie de Toque de Midas, só que com efeito contrário. E parecem achar lindo tudo isso, os burocratas da vida…

A “quase perfeição” era começar sem ter a obrigação de terminar, sem prazo. A única regra era “cinco vira e dez termina”. E trocava-se o adversário derrotado por outro. Era o regalo de viver sem se preocupar com a vida, muito menos com a morte. Era rir dela. Era vangloriar-se de ter mais futuro do que passado.

A “quase perfeição”, em suma, era ser criança!

CRIANÇA! Um ser evoluído que faz da vida a sua escola e do convívio com os mais velhos a sua sala de aula. Que ensina sem querer. Que sabe sem aprender. Que até sua condição de pequena é aula: “olhar o mundo de baixo para cima”. Algo que, antes de tudo é uma lição de humildade perante a vida, de reverência ao que é maior, de respeito, ensinando que a imponência, o orgulho, a soberba de “olhar tudo de cima para baixo” (ah, Leco…) é uma péssima invenção dos adultos que amam coisas e usam pessoas…

E ai daquele que pensa, imerso na soberba de ser adulto, que só ensina e não aprende com o pequeno. Porque erra redondamente e nem se dá conta disso. Ou se dá, mas finge que não. De vergonha. Vergonha? Sim, vergonha. Por ter tomado contato com a centelha divina presente na altivez infantil e não ter aproveitado aquele milagre que passou uma, duas, três, inúmeras vezes debaixo dos seus olhos.

Todos que vão para a escola, recebem instrução. Mas a criança ensina com o jeito de levar a vida, com comportamento, com modos, com maneiras de tratar o outro ser humano, com relacionamento, com senso de justiça apurado, em se colocar no lugar do outro, em compartilhar, em dividir, em tolerar… Paremos tudo o que estamos fazendo para reparar como eles, os pequenos, levam a vida, como encaram as coisas. É uma tremenda e imprescindível lição!

E por que é “quase perfeição”? Ora, porque acaba. Não é perfeito porque tem fim, porque passa. Porque fica para trás. Aliás, não fica totalmente, pois renova-se todos os dias, mas em outros. Depois vai se diluindo na aspereza da rotina, vai morrendo dentro da gente, no massacre do dia-a-dia cada vez mais selvagem, na guerra da vida que cada um trava a seu modo, com seus próprios dramas, incertezas, derrotas e vitórias.

Se me permitem um conselho, ainda que seja impossível voltarmos à “quase perfeição”,  que voltemos a encarar ao menos algumas questões da vida como crianças. Ou pelo menos o mais próximo disso que conseguirmos. Porque a criança é o ser humano perfeito em estado puro. E carecemos disso, de humanidade, de doses brutais da mais pura humanidade.

Como era bom ser criança!

Mas, ora bolas… Que sejamos mais crianças, ué! Sempre dá pra ser mais!

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Nota do Escriba:

Nesta reedição/adaptação de um texto escrito por mim ao Blog do São Paulo em 2013, desejo a todos os meus amigos leitores um Feliz Dia das Crianças. Sim, porque dentro de todos nós sempre haverá uma criança correndo num caminho qualquer, atrás de uma bola!

É, também, uma tentativa de criar um oásis de calmaria nesse mar revolto de lama que hoje é o São Paulo Futebol Clube, sem deixar de ser, claro, um protesto em estridente silêncio, pueril e forte, contra tudo o que a nós é apresentado como São Paulo Futebol Clube nos dias atuais.

Forte abraço,

Paulo Martins