Banner - Coluna do Paulo Martins

As Ruas São Paulo e Ugolino de Moraes eram “o ponto”. Sempre foram. Para os homens, havia um lugar predileto: o Bar do Sêo Maurico. Lá o fluxo de gente era o mais democrático e variado possível. Ricos e pobres conviviam sem receios ou melindres. Era habitat de pessoas peculiares, verdadeiras figuras. Os sujeitos vinham de suas casas, inclusive caboclos da zona rural, para abastecer suas despensas e aproveitavam para tomar uns tragos, jogar algumas partidas de sinuca e falar sobre futebol. Em voga, o Maracanazzo de 1950. Ninguém aceitava o gol de Alcides Edgardo Ghiggia, aquilo que diziam ser “o frango” de Barbosa,  a derrota em si. Com copos no alto, bradavam por vingança em 54. Queriam a cabeça de Rivadavia Mayer, o presidente da CBD à época. Alegavam que havia estrelismo demais no escrete canarinho, muito “oba-oba”, clima de “já ganhou”. Foi quando alguém gritou “Se o Francinha estivesse lá, teríamos levado o caneco!”. Todos aplaudiram, alguns até se levantaram para a salva de palmas para Francinha.

Mas quem era Francinha? Tratava-se do senhor França Galdino, um guareiense da gema, ou “bicho homem macho”, como ele mesmo não cansava de dizer sobre si. Francinha cultivava a fama de macho incorruptível, homem rude, áspero, desprovido de amenidades. Fazia bem esse personagem e, para tal, era “a fina flor da grossura”. Vivia uma vida espartana, sem luxos ou regalos (mais pelas condições do que pela fama de durão, mesmo). Trabalhava duro, de sol a sol, no serviço mais difícil possível, não era romântico embora gostasse de mulheres; no entanto passava longe dos livros de poesia ou flores para agradá-las. “Frescura!”, afirmava ele. Preferia oferecer a elas prendas, como cabeças de javalis ou capivaras que dizia caçar no mato. “Presente de homem!”, dizia, cheio de si, razão pela qual seguia a jornada sozinho. Francinha era daqueles que faziam de tudo para manter a fama de durão. Diziam que seu café da manhã se resumia a três ovos crus, uma talagada de conhaque de alcatrão e dois nacos de queijo purungo. Obviamente, o povo abraçou a ideia do personagem. As vezes diziam que ele bebia limalha de ferro derretido, só pra manter a fama de macho.

Mas a “lataria” não ajudava a ser tudo aquilo que pregavam por aqui. A aparência meio que desfavorecia a fama de monstro. França Galdino era um homem de estatura média-baixa, tinha no máximo 1,65m. Era atarracado, quadrado, forte. Porém, pouco acima do normal. Nada assustador, portanto.

E Francinha também jogava bola. Naqueles tempos, tal coisa era quase um ato de heroísmo perante as meninas da cidade. Francinha se sentia um guerreiro sumério. Dizem que todo lugar tem o seu “Conan”. Francinha era o nosso. Sujeito rude que era, jogava bola como um trator traçado. A técnica não importava, Francinha era a força bruta. Jogava quase sempre na zaga, as vezes de primeiro volante. Batia até na mãe, sem remorso ou piedade. Era um carniceiro dentro de campo. O lugar em que atuava não raras vezes tinha que passar por terraplenagem depois do jogo, tamanha a quantidade de valetas que ele abria com os carrinhos que dava.

Um dia o time do Bairro da Areia Branca, daqui do Condado, tratou um jogo contra o pessoal do Bairro Saltinho, do vilarejo de Torre de Pedra, que ainda não era cidade. Geograficamente, eram lugares quase conexos, pouco distantes um do outro, de modo que havia alguma convivência e até certa rivalidade. Por questões topográficas, o jogo haveria de ser no Bairro do Saltinho, mais plano, considerando que na Areia Branca quase todos os terrenos eram acidentados e os únicos planos estavam submersos pelas águas daquele chuvoso novembro.

O time do Saltinho jogava pesado também. Era formado totalmente por trabalhadores braçais, gente que tira o sustento de trabalho pesado. Pouca bola e muita força física. Quem mandava no esquadrão era Fenemê, um jagunço de quase “dois por dois”. Tinha fama de matador. Uns diziam que matava de rir, dada tristeza de seu futebol. Outros diziam que era tudo verdade e que já havia “embalado dois para viagem”, um deles numa partida de futebol, inclusive. Mas isso é assunto para outra oportunidade. Já o time da Areia Branca era formado por produtores rurais basicamente do ramo da pecuária. Menos fortes fisicamente, mas mais técnicos. Emídio, Ovídio e seu irmão Genésio eram os expoentes do time da Areia Branca, técnicos e vigorosos, mas nada que comparasse a força bruta do adversário.

Temendo pelo pior, com medo de apanharem até criar bicho, correram o Condado procurando uma solução para fortificar o time com mais poderio físico. Em todos os bares que chegaram, o nome ouvido era um só: França Galdino. Mandaram buscar o homem. A primeira impressão não foi boa. Ovídio, um sujeito magro de quase dois metros de altura, viu entrar no Bar do Maurico um “portentoso” baixinho de 1,65m. Quis desistir, mas ficou só observando. Francinha pediu um trago de absinto e mascando fumo de corda adquirido no armazém do Sêo Nino Momberg, tomou tudo, álcool e fumo, numa talagada só, como quem bebe leite. Genésio olhou para o irmão e balbuciou: “É o nosso homem!”. Nas tratativas para o jogo, explicaram tudo para Francinha, que ouviu atentamente, imóvel, só mexendo o palito de fósforo no canto da boca. Falaram sobre Fenemê e Francinha nem quis saber, topou na hora.

Disseram que iriam busca-lo na manhã do dia do jogo, que seria num sábado à tarde.  Francinha negou. Disse que só iria no seu próprio cavalo. “Se não, não jogo”. Aceitaram, mesmo temendo atrasos. “E o pagamento?”, indagou Francinha. Emídio, presente, disse: “duas mulas chucras”. Francinha de uma longa e sonora escarrada e cuspiu na mão: “Fechado, toca aqui!”. Meio sem jeito, Emídio apertou a mão do homem. Costumes de um ”lorde dinamarquês” educado nas melhores estribarias da vida!

No dia do jogo, Francinha preparou Lerdão, o cavalo preferido pelo andar macio e por ser muito manso (não queria dar vexame de vê-lo “velhaquear” na frente dos outros – não sabe o que é velhaquear? Poe no Google, ué!). Chegou no horário, almoçou com Emídio, vestiu o uniforme surrado da Areia Branca e foi para o campo, no lombo de Lerdão. Chegando lá, os dois times já estavam quase prontos, dentro de campo. De calção, meião e camisa, Francinha calçou as botinas de escavação. Bico de ferro, solado de borracha Alpargatas crivado de cravos, solado para todo terreno. Trajado, passou pelo time adversário e encarou Fenemê com seu famoso olhar sanguinário. Foi quase um juramento de morte. Fenemê queria voar no sujeito ali mesmo, antes do jogo. Uma confusão dos diabos. Até o padre que morava ali e atendia a Paróquia de Torre de Pedra chamaram para apartar o enguiço. Dez segurando Fenemê, que babava como cão raivoso, e apenas Francinha do outro lado, de bracinhos cruzados e palitinho na boca.

Começou o jogo. Toca pra cá, toca pra lá… Parecia que ninguém mais queria nada com nada. Puro medo de acontecer uma tragédia no jogo. De repente, Emídio passa para Francinha que avança em direção à intermediária do Saltinho. Avistou Fenemê e adiantou a bola propositadamente. O “monstro da Torre” cavoucou o chão como touro bravo e veio em direção de Francinha… Fenemê vinha com tudo e França Galdino também. Ambos de voadora em direção à bola. Ambos querendo errá-la e atingir o outro. Ambos querendo sangue. Ambos buscando separar a alma do corpo do adversário! Porque àquela altura, fadar o outro à morte não era mais o bastante.

O tempo parou. O impacto foi tão grande que, dizem, produziu uma onda de choque que varreu os cabelos verdes da cancha, fazendo deitar a grama. E o barulho? Dizem que foi tão grande que parou, por alguns instantes, a Guerra da Coréia, com as tropas achando que seria um apocalipse nuclear. Coisa de louco!

A bola não saiu do lugar, porém ficou soterrada, uns 40 centímetros para baixo da grama. E os dois ficaram no chão, desacordados. Fenemê roncava como o motor do caminhão homônimo, mistura de sangue, baba e desmaio. Francinha dormia – com cara de mau, frise-se – o sono dos anjos. Ou dos diabos, não se sabe. O fato é que acabou o jogo naquele instante, com menos de vinte minutos de partida. Chamaram o padre de volta, já visando a necessidade de extrema-unção. Mas não foi preciso. Fenemê acordou primeiro e, zonzo, pegou o rumo de casa, trançando as pernas como se estivesse cercando frangos pela estrada. Ninguém entendeu nada e, por isso, até hoje leva fama de covarde. Já Francinha acordou azedo. Grosso e insuportável, xingou todo mundo por não ter mais jogo. Mandou-os caçar tatu, chamou todo mundo de filho da fruta, encaminhando-os para a ponte que partiu e coisas do gênero. E, lépido e faceiro, saltou em Lerdão, pegando o trecho de subida a caminho do Condado.

Contudo, quando chegava no cume daquele trecho, ainda sob a vista da multidão que foi ao jogo, Lerdão começou a velhaquear com Francinha. O animal estrebuchava, empinava e parecia fazer força para desonrar o homem rude, que não entendia como aquele cavalo manso havia se transformado num possesso. O cavalo relinchava a morrer e Francinha em cima dele, se segurava como podia. Olhou para baixo e então se deu conta do que se tratava: era o osso de sua tíbia esquerda que, exposto por fratura no choque apocalíptico com Fenemê, cutucava o vazio do animal fazendo-o saltar desesperadamente, de dor. Quanto à dor de Francinha, era óbvio: a sua macheza foi tão grande que suplantou a tal sensação. Apeou do animal e, com as mãos, voltou o osso no lugar num só golpe.

Sujeito homem, o tal Francinha!

O mais curioso de tudo é que, quando ele contava essa estória, não sei o porquê, ninguém acreditava…

Ah, esse meu Condado tem muitas estórias!

Paulo Martins