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LUIZ DA GANA

A gana está para o futebol tal qual o diesel está para pesados automotores. Desprovidos disto, ambos são como o címbalo que retina em meio a surdez reinante, inúteis de tudo.

Gana, garra, vontade de vencer, de mostrar que é possível, de impor derrotas sistemáticas e vexatórias ao desafio materializado na própria vida em si, a ponto de fazê-lo, o desafio, desistir. Há muitos nomes para isso, é possível que cada um de nós chame de um jeito. Do mesmo modo, quase certo que cada um de nós demonstre de um modo peculiar.

Eu chamo “A Gana de Luiz” ou “Luiz da Gana”. Já Luiz eu não sei, nunca o vi discorrer sobre, muito embora ele me desse aulas sobre o tema todos os dias, e em dois períodos, das 11:40 às 12:15 e das 15:00 às 15:30. Ocorriam logo que chegávamos na escola no final da década de 80, e com pontualidade guareiense, típica do Condado, quando Dona Lenita ligava a tomada que disparava o sinal decretando o início da “hora do recreio”, que muito tempo depois passei a chamar de intervalo, algo que, aliás, foi meio que um rito de passagem, pela mudança de visão, mas isso é assunto para outra oportunidade.

Eis que lhes apresento Luiz, para nós “Luiz Fubá”, cujo apelido, aposto em duas frentes, ou se deu pela sua predileção pela sopa de fubá com batatas e cheiro verde, uma iguaria típica do Condado, ou pela cor da camisa que ostentava quando descia as escadarias que ligavam o refeitório à quadra poliesportiva da E.E. Coronel Castanho de Almeida. Luiz é filho do saudoso sêo Luiz Pinto e de dona Irma. Sêo Luiz Pinto era um conhecido marceneiro da cidade, muito embora para este escriba fosse um artista, considerando que construía os caminhões de madeira que embalavam os meus sonhos de infância. Enquanto a maioria queria os carrinhos de controle-remoto (Pégasus, Maximus e etc., as “febres” da época) eu queria ser feliz “guiando” um caminhãozinho de madeira feito pelo sêo Luiz. Dona Irma era a esposa dedicada, a fiel escudeira de todas as horas, o porto seguro do pai e do filho. Luiz, o dono da gana, teve paralisia infantil nas duas pernas ainda bebê e consumiu boa parte do tempo e atenção da daquela mãe que em virtude de sua dedicação o fez vingar sob suas asas, com todos os cuidados do mundo!

Sobre as lições que Luiz me dava – e que talvez ele nem percebesse – tudo que eu disser aqui não será exagero, pelo contrário, estará aquém, será miúdo. O relógio batia 11:20, então era só olhar para o portão da escola e esperar alguns momentos para ver surgir, de cadeira de rodas, um sujeito suando para subir a ladeira, a rampa da escola. Vinha de longe, do outro lado da cidade. Nas costas da cadeira, a mochila cheia de livros. No colo, uma bolsa grande. Ele subia a ladeira de concreto e já avistando a quadra, vestia a camisa amarela de mangas longas, em seguida atava por sobre a calça de agasalho as joelheiras de skatista que usava pela praticidade de coloca-las. E tirava de lá de dentro um item curioso: um rolinho de corda de varal, na cor vermelha. Calçava as luvas de goleiro, daquelas “sem-dedos” e com o pacote de corda de varal na boca, apeava da prisão que lhe foi imposta para ser o mais livre dentre todos os livres que a Terra já viu!

É sério: eu ficava em pé para ver. Achava um momento solene. E era mesmo, tenho convicção disto, meus iguais. Luiz se arrastava vorazmente na direção da quadra de futebol de salão, adentrava aquela arena de cimento queimado e inacreditavelmente ia em direção ao gol. Com paciência oriental, obstinação de um samurai e destreza de um disciplinado marujo, aplicava um nó aproximadamente na metade de cada trave, de modo esticar a corda no espaço do gol, como a corda mais grave de um violão, deixando-a tinindo, apta a zunir de tão esticada, cortando o gol ao meio, valendo só a parte de baixo, onde Luiz atuava.

Dizem que a posição de goleiro é mais ingrata dentre todas. Dizem que onde ele pisa, nem grama nasce. Pois com Luiz era diferente. Luiz pisava com os joelhos, com os quadris. E  onde ele pisava, fazia nascer novos sonhos naqueles que o viam jogar, na mesma medida em que Luiz realizava seus. Sem saber, fazia mais que isso: barreiras, todas elas, sucumbiam! Preconceitos iam por terra! Era a celebração de novos limites que nos eram impostos e o “mimimi” trivial perdia totalmente o sentido.

E Luiz fechava – F-E-C-H-A-V-A! – a meta. Até o diretor da escola, sêo João, olhava por entre as aberturas das cortinas de sua sala, com vista para a quadra, para ver Luiz jogar.

As bolas passavam zunindo como pedras estilingadas, cantando perto dele. Espalma para cá, rebate para lá, fecha o ângulo aqui e ali… Era lei manter o nível de competitividade, as vezes até exagerada. Mas quem via, sabia: derrota ou vitória pouco importava. Todos se davam por satisfeitos por ver aquilo. Era algo mítico, forte… Era belíssimo ver a bravura daquele rapaz em quadra, se jogando de um lado a outro, voando pela vontade por sobre seus limites. A gana era suas pernas. Pela gana Luiz voava. E nos levava a todos com ele!

E tudo isso num tempo em que acessibilidade não era Lei, onde bullying já existia às pencas, só não tinha esse nome. Se vejo o desdém dos “perfeitos”, a canalhice dos “sãos” que se desmancham em moléstia dentro de campo, me lembro de Luiz, o “Luiz da gana”, um sujeito que escolheu, ainda no berço, ser exemplo ao invés de vítima, que pegou o carregamento de limão que a vida lhe ofereceu, criou uma inesgotável fonte de limonada e matou a sede de todos nós.

Ah, Luiz… Se todos os onze tivessem a sua gana, seríamos imbatíveis!

Luiz, filho de sêo Luiz Pinto e dona Irma, vive em Guareí. Casou-se recentemente e formou sua família. É figura fácil pelas ruas da cidade. Amigo de todos, é um brilhante personagem do Condado dos Guarás.

Abandonou as quadras, mas a bravura segue a mesma! Mito!

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Na foto, sentados dona Irma e Luiz, com os irmãos em pé, ao fundo.

Paulo Martins