“Caro Rogério,

Você ainda não me conhece, mas quem te escreve aqui é um dos seus milhões de fãs espalhados pelo mundo.

Não serei ousado a ponto de dizer que sou o maior admirador que você conquistou nestes mais de 25 anos de carreira. O que eu posso lhe garantir é que nenhum dos são-paulinos que conheci na vida se emocionou mais com os seus feitos do que este que lhe escreve. Igualmente talvez. Mais não.

Como seu fã-quase-que-número-1, eu preciso ser honesto e lhe confessar uma coisa, jamais admitida para qualquer outra pessoa do meu círculo de convivência:

Eu já odiei Rogério.

Simples assim. A explicação chega a ser óbvia. Pensava: como assim alguém ousa tentar substituir Zetti?

Eu nasci no ano de 1985 e, assim como todos os são-paulinos gerados naquela década, cresci admirando o goleiro do nosso bicampeonato mundial 1992/1993. Era “Zeeeeetti” o nome que eu gritava quando fazia uma defesa nos tempos das peladas infantis. Não o seu.

Ahh, que tempo bom. Como era fácil discutir futebol com os amiguinhos corintianos e palmeirenses, que tão inutilmente tentavam sobrepor Ronaldo e Velloso/Sérgio, respectivamente, ao nosso arqueiro. Pobres amiguinhos. Zetti era imbatível.

O ódio por você nasceu bem nessa época.

Meu primeiro ano como consciente fã de futebol coincide com a sua chegada ao Morumbi. Impossível lembrar com precisão o exato momento em que eu me disse torcedor do São Paulo pela primeira vez mas, fato é que, àquele 7 de setembro de 1990, data de seu primeiro treinamento no CT da Barra Funda (também três dias antes do meu 5º aniversario), eu era um recém-oficializado são-paulino. Isso depois de passar um dia gremista, por causa do bonito azul do time gaúcho no futebol de botão do meu irmão; e um outro dia bugrino, pois ‘Guarani’ parecia ‘Guaraná’, a bebida favorita daquele pequeno ser.

Uma criança que em pouco tempo, e com a ajuda do meu primeiro álbum de figurinhas, saberia escalar a equipe do São Paulo pela primeira vez. E adivinhe? Dentre os 11 titulares, Zetti era o goleiro.

Depois de nossas estreias ‘simultâneas’ como são-paulinos, anos mais tarde a vida ainda nos proporcionaria outra ‘coincidência’ de datas, a qual eu só aprenderia depois de crescido. Sua estreia no Morumbi como goleiro profissional ocorreu em 18 de setembro de 1993 (oito dias depois do meu 8º aniversário), uma vitória do São Paulo por 2 a 0 contra o Bahia, em partida válida pelo Brasileirão daquele ano. Exatos 52 dias depois (fiz as contas), eu pisava pela primeira vez no Cícero Pompeu de Toledo, para me apaixonar definitivamente pelo nosso time. Na ocasião, vitória nossa, também por 2 a 0, dessa vez contra o Flamengo, válido pelo mesmo campeonato.

Vejo tanta gente reclamando do calendário do futebol brasileiro de hoje em dia, mas naquele início da década de 90, você sabe, a coisa era muito pior. Eram tantos campeonatos e troféus na trajetória tricolor, que não era incomum vermos o São Paulo jogar até quatro partidas por semana. Me lembro inclusive de uma ocasião em que jogamos duas vezes no mesmo dia, com o Juninho, ainda sem Paulista, atuando em ambas as partidas. Com o calendário apertado, além das constantes presenças na Seleção Brasileira, era impossível que Zetti jogasse todos os jogos. E daí vem as minhas primeiras lembranças sobre você.

Eu te odiava, Rogério.

O primeiro jogo seu que eu guardo na memória (mas certamente não o primeiro seu que vi) é um São Paulo x Santo André, no Morumbi, válido pelo Campeonato Paulista de 1994. O Tricolor saiu perdendo por 3 a 0 e, antes que ele virasse a partida (que terminou 5 a 3 para nós), eu, no alto dos meus 8 anos de idade, decretava: “Tá vendo? É só jogar esse cara no lugar do Zetti, que tomamos gol atrás de gol”. Claro, não exatamente com essas palavras. E com um detalhe: eu sequer tinha visto os gols tomados pelo São Paulo, uma vez que acompanhava o jogo pelo rádio. A mais pura cornetagem infantil.

Viveríamos pouco mais de 2 anos até que Zetti anunciasse a sua saída do São Paulo. O pior? Rumo ao nosso rival Santos. O pior ainda? Você seria o nosso titular para 1997. Um tapa na cara deste ainda pequeno são-paulino.

Mais do que nunca, eu te odiava, Rogério.

Por pouco tempo. A 2ª rodada do Paulista daquele seu primeiro ano como goleiro titular reservou um jogo difícil para o São Paulo, contra o União São João, em Araras. Era uma feliz tarde de sábado para mim, pelo simples fato de que a TV Globo, quando ainda se propunha a transmitir jogos neste dia da semana, exibiria o Tricolor em ação.

No roteiro mais do que conhecido por você, não foi preciso muito tempo de bola rolando para acontecer: gol de falta, do ‘substituto de Zetti’. Incrível!! Gol de goleiro!!! A primeira vez que eu ouvia falar de um desses, apesar de à época já existirem Chilaverts, Higuitas, Jorge Campos e etc. Era como se de repente, como que por milagre, se tornassem realidade as minhas brincadeiras do dia a dia, nas quais eu fantasiava jogos do São Paulo decididos com gol de Zetti, no último minuto.

Eu, que assistia sozinho o jogo na sala de casa, saí correndo para o quarto, para acordar e dar a notícia ao meu irmão, tão são-paulino quanto este que lhe escreve.

De repente, eu já não te odiava, Rogério.

Foi o começo de uma das tantas brilhantes temporadas que você teve na carreira, e que culminaria na sua primeira convocação para a Seleção Brasileira.

Eu sou um cara meio cético, mas é impossível não se pensar em ‘coisas do destino’ quando lembro da Copa das Confederações de 1997. O Brasil foi campeão com sobras daquele torneio, com um time que contava com jogadores do calibre de Romário, Ronaldo, Bebeto, Denilson, Rivaldo, Leonardo, Juninho Paulista, Cafú, Roberto Carlos, Dunga, Aldair, Dida e César Sampaio, entre outros (e pensar que hoje sobrevivemos de Luiz Gustavo, Elias, Oscar, William, Hulk e etc).

Título fácil, mas com percalços extracampo pelo caminho. Algumas molecagens a mais na concentração, e de repente você já não era mais um dos goleiros favoritos de Zagallo. Algo que prejudicaria, não tenho dúvidas, a sua carreira na seleção pelo resto dos tempos.

Meses depois daquele torneio, você assistiria pela TV o Brasil perder a Copa do Mundo da França para Zidane, mesmo estando em nível no mínimo equivalente ao dos convocados Carlos Germano e Dida. Tu ainda virias a disputar dois mundiais, ganhando inclusive um deles, mas nada próximo do que seria capaz de contribuir.

E é aqui que entra a parte do tal ‘destino traçado’. Eu tenho plena convicção de que, se tivesse sido convocado tantas vezes quanto mereceu na carreira, sua história no São Paulo não teria sido tão grandiosa, não apenas por causa das vezes em que você nos desfalcaria para servir a CBF, mas também porque fatalmente teria despertado ainda mais interesse do mercado europeu. Rogério, você só é M1to por causa de Zagallo! Melhor assim.

Mas se o Velho Lobo ajudou, teve um outro senhor por aí que chegou a colocar em risco o seu processo de mitificação. Em uma carta de um fã com tanto de positivo a lhe dizer, o episódio com Paulo Amaral poderia inclusive ser deixado de lado. Mas preferi lembrá-lo por um único motivo: refletir, como tenho certeza que você já fez, sobre como uma má gestão ou um mal gestor é capaz de influenciar negativamente a história de um clube do tamanho que tem o São Paulo. Qualquer semelhança com os últimos anos não é mera coincidência, e eu lamento muito que seu final de carreira não tenha sido acompanhado de glórias do patamar que você nos ajudou alcançar. Uma pena.

Passavam-se os anos, e suas boas temporadas não se revertiam em títulos, com exceção a um Paulistinha ali, um Rio-São Paulo acolá. Muito pouco para Rogério, já Ceni devido ao xará Pinheiro.

Eis que chegava 2004, com o São Paulo de volta a Libertadores depois de 10 anos. E é deste ano que carrego mais um orgulho da minha vida futebolística. Casa cheia em todos os jogos da 1ª fase no Morumbi, tamanha a alegria são-paulina em ver o time de volta a nossa competição favorita. O dinheiro, curto na época, me fez esperar as oitavas de final para torcer ao vivo pelo Tricolor. Ingressos disputados no tapa, que me fizeram restar lugares apenas entre as cadeiras cativas superiores. Sem dúvida, um dos piores lugares para ser ver jogos no nosso estádio. Tanto que foi difícil ver o Rosário Central abrir o placar, e os dois gols do Grafite, que levaram a decisão para os pênaltis.

Cicinho errando a primeira cobrança, você convertendo a sua e pegando as derradeiras contra Gaona e Irace. Sim capitão, eu estava no maior jogo da sua vida no Morumbi. O maior da minha por lá também. Por ironia do destino, logo atrás do gol dos pênaltis… tinha que ser assim.

Eu já idolatrava Rogério Ceni.

O título das Américas não veio aquele ano. Tanto melhor. Na temporada seguinte é que lhe aguardavam as glórias. Três títulos, 21 gols marcados e inúmeras defesas decisivas naquele que seria o seu melhor ano da carreira. Ao final do jogo contra o Liverpool, a primeira e até hoje última vez em que o futebol me fez chorar. Mérito de Fabão, Lugano, Edcarlos, Cicinho, Mineiro, Josué, Danilo, Júnior, Amoroso e Aloísio sim, mas, fundamentalmente, mérito seu.

O tricampeonato brasileiro na sequência, com você no papel de protagonista, te fez definitivamente mudar do status de ‘jogador importante na história do São Paulo’ para ‘o jogador mais importante na história do São Paulo’. Enfim M1to.

Se soubéssemos que seriam aqueles os seus últimos títulos de grande relevância com a camisa do São Paulo, talvez tivéssemos comemorado de outro jeito, né? De lá para cá, por causa de uma série de fatores, ficamos mesmo no quase, como por exemplo na Libertadores 2010 e no Brasileirão do ano passado. Paciência.

Eu também tive o prazer de acompanhar in loco o seu último troféu conquistado na carreira. Mas aquele meio-jogo contra o Tigre não ficaram a altura do resto de suas glórias.

Pelo contrário. Quiseram os deuses do futebol que as pinceladas mais brilhantes da parte final desta obra de 25 anos fossem reservados exclusivamente a você. O milésimo jogo (na qual eu também estive presente), o jogo em que você superou Pelé no número de partidas por uma equipe, e o seu centésimo gol.

Ahhh, o seu centésimo gol. Poderia este ter sido o último capítulo do seu livro. Isoladamente, o maior lance de sua carreira, atrás apenas daquela defesa na falta do Gerrard. Concorda? Eu não tenho dúvidas…

Um dos últimos momentos felizes vividos pela torcida tricolor, tão acostumada com as glórias, e tão sofrida recentemente.

Nesta sexta-feira você dá adeus de vez à carreira de jogador. Para completar o ciclo de coexistências, estarei eu de novo presente ao Morumbi, neste dia tão especial para você. É possível que o futebol me faça chorar pela segunda vez nesta noite. Na próxima carta, eu te conto se a profecia se realizou.

O cara dito arrogante por alguns que não o conhecem, e que preferem desdenhar de quem sabe se pronunciar sobre qualquer questão. O cara dito ‘difícil de se lidar’, mas que é elogiado por 99% dos técnicos e jogadores com quem atuou junto. O cara que revolucionou a posição de goleiro, embora exista um bando de gente dessa geração Playstation que prefere acreditar que esse negócio de ser líbero e jogar com os pés surgiu com Manuel Neuer. Enfim, o maior ídolo que me deu o esporte, que tanto me consome de tempo, amor e dedicação.

Dizem que jogador de futebol morre duas vezes, a primeira quando pendura as chuteiras. Refletindo sobre isso, e observando o tanto de atletas que sofrem depois da aposentadoria, por um momento eu cheguei acreditar nesse estigma. O fantasma do fim de carreira assombra a todos, e por isso muitos acabam adiando ao máximo o anúncio. Com você não foi diferente.

Mas fique tranquilo, Capitão. Só um pouquinho a mais de reflexão me deram a seguinte certeza: jogadores normais podem morrer duas vezes. M1tos não. M1tos não morrem. Caras como você seguirão imortais na história desse clube e na memória de cada são-paulino que um dia já riu e chorou com você.

Se for difícil acreditar nas palavras daquele que um dia já te odiou, acredite neste que é e será sempre um admirador seu.

De um eterno fã,

Wagner Moribe”