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Véspera de feriado prolongado. Um domingo daqueles atípicos, principalmente para aquele lugar. Um silêncio que sugeria o de uma abadia, porém sem o tradicional canto gregoriano ou o murmúrio suplicante de monges de joelhos. Tampouco a paz se faz presente.

Na verdade não é bem silêncio o que há ali. O som de diversos transportadores de objetos apoiados por rodízios zune como um enxame de vorazes abelhas africanas. Também ecoa por aqueles corredores o som dos coturnos pisando firme, entremeado ao estalar de um par de sapatos Berluti feitos à mão. Quatro sujeitos, três deles seguranças. Empurram, cada um, o seu próprio “carrinho de compras” cheios de caixas de papelão, todas abarrotadas, com documentos saindo pelo ladrão.

O sujeito dos sapatos Berluti, liderando a derradeira comitiva rumo ao ostracismo, para em frente à sala do Presidente, tira as chaves do bolso, abre a porta de carvalho e adentra ao “salão oval”. Confere se não se esqueceu de nada. Por fim, corre a mão direita visando o bolso do casaco e, como quem desembainha uma espada, saca dali um envelope lacrado com cera vermelha, cuja forma ostenta um brasão imponente, coisa já em desuso, típica dos nobres do início do século XVIII. Deixa escorregar o envelope contendo “O Saio” pela portentosa mesa de mogno, a qual acaricia como faz o ginete que acaba de apear o animal de sua última cavalgada. Então sai da sala, mas não sem antes olhar tudo ao redor, como que se lamentasse ter de deixar o lugar. Vira as costas e some, pequeno, mirrado, ínfimo, como que tragado pelo chão, muito menor do que ali entrara, meses antes.

Abatido, de semblante especialmente fechado, funesto, com os dentes cerrados brada aos homens para que o sigam. Apressados, os brutamontes montados em seus coturnos empilham as caixas dentro de dois veículos importados, emparelhados na vaga reservada ao Presidente. O ruído grave do bater de portas é a trombeta que anuncia as últimas instruções, que os homens de coturno recebem: — “Não quero ser importunado de forma alguma. Não quero falar com ninguém. O mundo pode estar acabando, não quero!”. E some no horizonte sem deixar rastro… No primeiro dia útil seguinte – quanta ironia! – instituir-se-ia o “Dia do Saio” no São Paulo.

As linhas acima são uma obra de ficção. Os detalhes advêm da mente tacanha deste mero escriba, servo das letras. Todavia, tentam reconstruir os últimos momentos que precederam à queda, escandalosamente real. O que se passou em detalhes, não se sabe.

Contudo, sabe-se, e muito também, sobre outras coisas… Nós, do lado de cá, sabemos muito, na verdade. E neste ponto, não utilizarei meias-palavras: é um alerta aos remanescentes, que se faz necessário pelo deserto que estamos atravessando, sobretudo pelo advento da alvissareira eleição do novo Presidente!

Sabemos, por exemplo, depois de tudo o que fora feito, de tudo o que se viu – e também do que não se viu e nunca será visto – que não demoraria a entrar em cena o estratagema comum aos malfeitores desde os tempos de Cabral: “culpe a todos, menos a si próprio”. Dito e feito. Na sequência ao “Dia do Saio”, viu-se de tudo, especulou-se fartamente. E sequer um ato de contrição de quem de dever, ao menos um “mea-culpa”, nada. Como se o lamaçal fosse o sujeito ativo de sua própria criação, responsável por sua própria existência, o caos autônomo e auto-sustentável.

Sabemos que ninguém é capaz de tamanho estrago sozinho, e da noite para o dia. Trata-se de um processo feito a muitas mãos, uma sucessão de desastres. Os mais antigos sempre citam um dito popular para ocasiões como esta: “a terra jurou que tudo o que fosse feito sobre e debaixo dela, haveria de, um dia, ir aos telhados”. Sabemos, portanto, que é, apenas e tão somente, uma questão de tempo. De um jeito ou de outro, a coisa virá à tona, porque é inevitável, diante do processo de depuração que vivenciamos como um todo. Paixões clubísticas à parte, basta olharmos ao redor! Não há segredo que se sustente quando há alguém buscando o saber.

Sabemos que não há cenário favorável à continuidade em tudo o que nela se traduz, ou seja, o pensamento retrógrado, centralizador, fechado; é o momento da inovação, da abertura, da participação do torcedor, da alternância salutar, da criatividade, da assertividade, do discernimento e ciência se sobreporem ao folclore e aos achismos, de ser mais técnico e menos político; é proibido impedir a si próprio de analisar as lições que a história oferece, olhando para tais acontecimentos de mente aberta e sem ressalvas, melindres ou desdém, até porque ela, a história, não costuma aceitar desaforos; ao mesmo tempo em que é hora de prudência, moderação, correção, discrição e trabalho sério e duro, que em doses cavalares, vejam só, costuma construir verdadeiros prodígios.

Sabemos também que há problemas financeiros no horizonte, que há um novo e colossal Morumbi de dívidas e a ser desconstruído; é certo que o apoio, a compreensão e paciência para com o time em campo e obviamente para com quem administra o clube, se dará na mesma proporção em que forem detectados, na gestão do São Paulo Futebol Clube, os predicados citados no parágrafo imediatamente anterior.

Sabemos que o São Paulo Futebol Clube é parte integrante da vida de cada um de nós, que escolhe ir ao concreto emanar as melhores vibrações possíveis mesmo tendo de enfrentar a vida de gado em direção ao abate, que consome produtos oficiais com frequência, inclusive jogos na tv fechada, que escolhe ser sócio-torcedor até quando não dispõe de condições para ir ao Morumbi, apenas para ajudar o time. Sabemos que muitos dão mais do que têm!

Sabemos que o momento do futebol brasileiro nunca foi tão ruim, que a tal “camisa canarinho” não causa mais espanto nem à mais nanica das nações, que qualquer time minimamente organizado é capaz de trazer problemas sérios ao retrógrado, ineficaz, sem auto-crítica e petulante futebol nacional, com “menção honrosa” ao trabalho dos dirigentes, treinadores e parte da imprensa nesse “glorioso” processo. O São Paulo, infelizmente, faz parte desse contexto, quando poderia ser um oásis. Impõe-se o dever de buscar novas soluções, sobretudo uma nova visão sobre o esporte, reconduzindo o futebol ao caminho da inovação, atualizando a prática do jogo em si, reconectando-o ao que costuma ser jogado no resto do mundo. É preciso mais do que colocar zagueiros para defender, volantes para apoiar, meias para criar e atacantes para atacar. Tudo evoluiu e ficamos pelo caminho, à margem. Divorciemo-nos do retrocesso! É clichê, mas vale: não é possível obter um resultado diferente fazendo tudo do mesmo jeito de sempre.

Sabemos, por fim, que embora o discurso fosse outro, a prática agiu de modo a propor a aniquilação de tudo o que se conhecia por São Paulo Futebol Clube. E, por conseguinte, tratava-se do extermínio da paixão que cultivamos pelo diamante que ri. Não há outra maneira de classificar um desastre tal. Atos, mandos e desmandos em série pareciam reclamar o direito de enterrar a todos na vala comum do “tanto faz”, fazendo crescer o desinteresse geral, o desdém com o time, tamanho o desânimo plantado em nossas fileiras moribundas, soterradas por toneladas de péssimas atitudes e horrorosos exemplos. Tentaram nos enterrar, porém, há algo que nós, torcedores conscientes, sabemos e vocês desconhecem completamente: nós somos semente!

Somos semente indestrutível de um amanhã inevitável, novo, glorioso e belo! E se o ofício da semente é germinar, assim já o fizemos… Possuímos as características da muda, capazes de fazer brotar o amor que temos pelo clube por onde quer que passamos. Sabemos que trata-se de um processo, que a solução não acontecerá da noite para o dia.

Nós torcedores, somos a semente, a muda. Somos o SÃO PAULO FUTEBOL CLUBE!

Paulo Martins