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Infância e futebol.

Para mim, são palavras que conversam entre si. A infância se vai, se esvai. O futebol fica, deveria ficar, mas vai se esvaindo, também.

Dia desses me lembrei, num papo entre amigos, de uma ocasião da qual só posso confiar nos relatos de meus pais, sob posterior confirmação de amigos da família (ou seria a minha quota pessoal de detratores?) que presenciaram o fato. Era um domingo e estávamos nos preparando para assistir ao jogo decisivo da final do Campeonato Paulista, contra a Portuguesa, em 22 de dezembro de 1985. O escriba tinha quase cinco anos, era marrento e falava pelos cotovelos, segundo meus detratores. Na hora da partida, sem avisar, amigos do meu pai chegaram em casa para uma cervejinha e um bate-papo. Vestido com a camisa tricolor de meu pai que àquela altura beirava meus joelhos, fui deixado na sala em frente à TV, enquanto sêo João foi receber o pessoal e servir a cervejinha. A casa de meus pais sempre foi (até hoje é) uma espécie de ponto de encontro dos amigos e familiares, numa época em que não existiam celulares e as pessoas conversavam olhando nos olhos umas das outras… Coisa fina!

Aquele era o São Paulo de Cilinho e seus meninos. Eu pouco entendia de futebol, mas já acompanhava, segundo meu pai, geralmente de pé, em frente ao televisor que mais parecia um caixão de abelhas. Segundo dizem, começou a partida, e a imagem da TV, oriunda do sistema de retransmissão local – que funcionava mais em virtude da fé do povo do que propriamente por equipamento técnico adequado – começou perder qualidade. Ok, o povo do condado é composto por pessoas de fé, mas como dizia Didi Mocó: “as vêis fáia, né?!”. Naquele dia, “faiou”. E “faiou” feio!

Para o amigo leitor mais jovem poder entender, começaram a aparecer aquelas linhas horizontais típicas da imagem ruim, no meio da tela da TV. Na minha imaginação de criança, uma cena amedrontadora, porque imaginava que aquilo ocorria dentro do campo! Era uma cena dantesca! Crianças com medo gritam para seus pais, no apuro. Rui Barbosa já explicava esse fenômeno: “Se um dia, já homem feito e realizado, sentires que a terra cede a teus pés, que tuas obras desmoronam, que não há ninguém à tua volta para te estender a mão, esquece a tua maturidade, passa pela tua mocidade, volta à tua infância e balbucia, entre lágrimas e esperanças, as últimas palavras que sempre te restarão na alma: minha mãe, meu pai.”

Se havia justificativa para o homem feito clamar aos pais, que dirá para o escriba, do alto dos seus incompletos cinco anos de idade! Só sei que de posse do alvará concedido por Rui Barbosa, gritei alto para meu pai, que estava na outra sala: ” “Paaaaaaaai… Corre aqui porque rachou o campo!”. Ninguém me ouviu… Diacho! A balburdia era tão grande na sala de visitas, as risadas, piadas e tudo o mais, que meu grito perdeu-se naquele “mercadão” que estava a sala de estar, e foi em vão. Ninguém veio!

A torre de retransmissão ficava na parte mais alta da cidade, o que de certo modo facilitava para que a qualidade da imagem descambasse morro a baixo. Gravidade, sabem como é! E o que eu via era uma imagem ruim feia que, insisto, eu acreditava estar acontecendo no campo.  A coisa toda só piorava. Gritei mais alto: “PÁÁÁÁÁÁÁÁAÍIIIIII!!!! Venha logo porque piorou… A rachadura tá andando pra cima e pra baixo do campo. Já já vai sumir alguém…”

A situação era justificada.

Segundo dizem, eu estava petrificado, em pânico, com a possibilidade de mais alguém morrer num campo de futebol. Porque segundo as testemunhas da infância do mero escriba, meu primeiro contato com o mundo cão veio através das imagens dos corpos empilhados no campo da tragédia do Estádio Heysel, na Bélgica, durante a final da Liga dos Campeões, entre a Juventus de Turim e o Liverpool, quando trinta e nove pessoas morreram e centenas se feriram em um confronto entre as torcidas, no dia 25 de maio daquele mesmo 1985. Fiquei chocado com aquilo, dizem.

Meu pai, assim como todos da sala, vieram correndo. Viram do que se tratava e riram da inocência do escriba, não sem antes me ensinarem uma importante lição: não acredite em tudo o que vê na TV!

Tenho “flashes” dessa ocasião na memória, contudo não posso dizer se tais lembranças são minhas, ou seja, se são efetivamente vividas por mim ou se são obra do meu consciente ao ouvir os relatos dos amigos e parentes que conviveram comigo nessa época de minha vida. O fato é que de vez em quando me pego pensando nessa história.

Hoje, quase trinta anos depois, a TV é melhor, o clube é o mesmo e a mania de ver os jogos de pé, em frente ao aparelho televisor persiste, assim como a paixão, ainda maior que antes.  A imagem tem mais qualidade, beira à perfeição e se mede por pixels, muito embora eu ainda não tenha compreendido direito o que seja isso.

Mas ainda vejo linhas horizontais que varrem o dia-a-dia querendo rachar o campo, o grupo, o técnico, o time, o clube. Vejo linhas horizontais de um futuro sem horizonte, que forjadas pela inexplicável maldade humana, cortam mais que navalha, porque dilaceram o espírito, a mente, a vontade, a alma. Que quando racham a superfície, metaforicamente engolem gente, suas virtudes, suas reputações, seus sonhos e tudo o que podem nos dar. Tragam tudo, como um buraco negro insaciável. E sugam aquilo que poderia ser, que poderia ter sido e não foi, nunca será. Sugam a paciência, o tempo, a lógica, a glória!

São reais, são linhas inimigas e estão por toda parte. Estão em alguns setores da imprensa, em algumas redações e, infelizmente, até dentro do próprio clube. Dispensei algum tempo tentando entender o porquê disso tudo. Ainda que não justifique – porque simplesmente não há justificativa minimamente aceitável para tal – quanto à imprensa é certo que este sentimento advenha do início da década de 90, fortalecido pela arrogância de nossos dirigentes e torcida, depois dos sucessos seguidos de 2005 a 2008, quando da eclosão do lamentável e assoberbado termo “soberano”.  Já internamente, difícil saber ao certo. Talvez quando se autoproclamaram monopolistas da virtude, os únicos capazes de acertar. O poder que sobe à cabeça, que turva a visão, que parece dar a cada decisão tomada um cunho dogmático, infalível, divino. Talvez tenha sido/seja isso.

Eu olho para aquelas linhas varrendo a tela, rachando o campo, e meu único desejo quanto a isso é querer voltar no tempo em que a camisa batia nos joelhos e que tudo aquilo era apenas e tão somente um defeito da tela, da imagem da TV na sala da minha infância.

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Dia desses me lembrei novamente dessa história numa conversa com o Paulo Vinícius Herren e Katia Firmino, amigos daqui do Blog. Prometi que iria relatar a história. Pedi a meu pai e a alguns amigos da família que me ajudassem a relatar com a maior precisão possível e aproveito a oportunidade para dedicar esta coluna a vocês dois em especial, pela nossa amizade!

Paulo Martins