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Há algo diferente. Sem dúvidas, há.

Um estalo. Um estardalhaço… Uma revolução! Exagera o escriba. Pois que seja! Porque aonde era habitáculo do remanso, morada do “vai que é sua que eu não vou”, hoje reina o brio. O BRIO!

O brio é sentimento inerente daquele que não aceita perder, daquele que é indolente com a derrota, que remói com todas as suas forças cada segundo que antecedeu o erro que lhe custou a vitória. O brio aguçado é a primeira característica de quem vence. E ter onze briosos em campo é o componente inicial de qualquer time vencedor. O brio é o amor-próprio. É amar o que se faz, é fazer com abnegação de monge e disciplina oriental a ponto de não aceitar, de forma alguma, o fracasso.

Rinus Michels não seria capaz de fazer vingar um time com onze craques molestados pelo desdém. Muricy menos ainda. Mas é preciso dizer que, com a saída do treinador, algo mudou. A mudança mexeu no íntimo dos atletas, de alguma forma.

E não foi pouco, meus amigos. Não é. Vocês – nós todos, a bem da verdade – estão lembrados.  Algum tempo atrás, o fim de jogo era um desfile do pior compêndio já feito sobre o desdém. Era o festival do “vamos segui trabalhando…”, do “da próxima vez não poderemos dar bobeira…”, do inquietante “é pensar no próximo jogo…”. Sempre o próximo e nunca, jamais, aquele recém terminado. O São Paulo estava aprisionado, refém de uma espera sem fim, algo como perseguir o pote de ouro no fim do arco-íris. A tragédia dantesca de um acúmulo sem fim de decepções!

Ah, meus iguais… E onde havia de estar aquela dor da derrota que rói os ossos, que faz estalar as junções mandibulares como se quiséssemos arrancar um pedaço do mundo com os dentes? Que fim levou? Ninguém, daqueles onze de branco, padecia disso. O jogo era, insofismavelmente, um espetáculo catártico. Mais: quem se encorajava a assistir àqueles sujeitos em campo, saia dali neurótico, doente. Porque doía como fogo-selvagem. Dói como fogo-selvagem!

Meus iguais, vocês sabem. O futebol não é ciência exata. É, talvez, a ciência humana de maior viés sobrenatural que a história da humanidade já viu. Que é ciência, não tenho dúvidas. Porque prodígios saem dali, daqueles caldeirões de concreto, como se fossem elixires capazes de atenuar todas desgraças das outras coisas mais importantes. Ora, então me digam: não é mais fácil tolerar uma desilusão amorosa com um título mundial no bolso, recém-conquistado? O contrário também se aplica: não se faz insuportável o trajeto para a casa, ainda que a bordo de um superesportivo, depois de uma goleada do rival? O futebol é uma das maiores invenções do homem, porque é a síntese da vida em turnos de noventa minutos, Reparem: há de tudo ali.

Mas voltemos à nossa epopeia.

Semanas atrás, cheios de dedos, detratores até babavam fazendo cosplay de cavaleiros do apocalipse. O que mais se ouvia, de modo geral, era de que todo o jogo seria praticamente um arroubo suicida daqueles onze. Iam ao encontro da morte em turnos de noventa minutos. Iam para perder. E perdiam. Perdiam o jogo. E junto dele a vergonha. Foi num desses, numa noite daquelas, de meio de semana, que por algum motivo eclodiu algo diferente, que ricocheteou nas paredes dos aposentos do vestiário número um do Cícero Pompeu de Toledo. E atingiu em cheio a todos. E foi se espalhando, foi ventando por todo o país e a qualquer lugar onde houvesse um irmão em três cores, eu imagino. Mas o quê, de fato, se espalhou, o escriba não sabe dizer ao certo. Só sabe que é novo, diferente e eficaz.

É estranho até. Sobrenatural. Porque aquela cancha pisada pelos onze tricolores era terra arrasada, árida, quase infértil. Aí me lembro da fé. E a fé faz dessas coisas. A fé faz brotar flores no paralelepípedo, é capaz de fazer surgir lavouras em lápides de concreto. A fé derrete o chumbo do céu! E tem muito de fé nisso tudo, mais, muito mais do que imagina a vã filosofia das pranchetas, que também tem seus méritos nisso que é novo.

E nos contagiou a todos.

Aos poucos, um a um, os degraus foram sem enchendo. Era gente no concreto e ao redor dele. Gente em casa. Gente no trabalho. Todos em comunhão. Era a festa sem razão de ser e com toda razão do mundo (vá entender!). Era a nau sobre rodas carregando os nossos naquele o mar de gente. Gente nossa! Mar de gente vermelha, preta, branca, rica, pobre, baixa, alta… Mar de iguais, na democracia mais perfeita do mundo. No mundo mais perfeito possível. É fato, todos nós sentimos que havia algo de diferente, naquela noite de quarta-feira.

Havia tudo armado para a tragédia. Absolutamente tudo! As preparações para a estocada final haviam sido rigorosamente feitas. O adversário tinha sua força reconhecida e queria de todos os meios eliminar o maior vencedor brasileiro de todos os tempos. Muitos dos nossos detratores acima citados o havia posto num pedestal, como se não pertencesse mais à realidade latino-americana, como se fizessem por merecer disputar outras contendas no além-mar, como seres de uma casta diferenciada. Viriam com tudo o que tinham, para eliminar o São Paulo.

Pois bem, o brio… O BRIO! Do goleiro ao último homem de frente. Foi tão intenso que jogamos sós. Até porque não havia mais espaço em campo. Defendíamos e atacávamos em uníssono: time e torcida. O gramado abarcava milhões e não causava estranheza que o adversário não tivesse espaço para jogar. Só havia um time em campo, o mais brioso, o mais feroz, o mais querido. Duelaram em todos os lances, disputaram todas as bolas. Deram tudo, sofreram… Quando não era possível alcançar o adversário, partiam por amor à causa perdida, acreditavam que era possível.

Foi. A coisa, como um todo, encaixou.

Aquele levante, emblemático, pode ter trazido a lição definitiva: a compreensão de que, sem sofrimento, nada prosperará.

E dali em diante, o rumo parece ter mudado. O comando, mais discreto e assertivo, trabalha calado, mostrando o caminho das pedras, instruindo por situações reais, aplicáveis, usando sem dó a máxima de que todo veneno tem seu remédio apropriado. Por certo, tais atitudes oferecem aos comandados o conforto do previsível, de saber o que os espera, de haver incorporado à sua natureza – ainda que em tão pouco tempo – um repertório capaz de fazê-lo apto às situações que se apresentam.

A bem da verdade, se não quiser ler o texto todo novamente, leia somente o último parágrafo. Pode estar ali boa parte dos motivos do renascimento. Mas leia também o título.

Nada seria desse time sem o brio. Como prescreve, emblematicamente, a carta de São Paulo aos Coríntios: sem amor, seria como o metal que soa ou como o címbalo que retine.

S.P.F.B.C. – São Paulo Brio Futebol Clube!

Por: Paulo Martins