Banner - Coluna do Paulo Martins

Eu me lembro bem daquele 26 de agosto de 1992. Era uma daquelas “quarta-nobre”, como nos referíamos no escritório aos dias da semana em que o São Paulo jogava. Poderia ser “terça-nobre”, “quinta-nobre”, “domingo-nobre” e assim por diante, bastante o tricolor jogar para fazer do dia comum um período investido de grandeza. Aquela quarta era uma data importante, estávamos trabalhando para fechar as declarações de renda das pessoas jurídicas, que ocorreria no fim do mês, se não me falha a memória.

Sêo João, pai do escriba, tricolor doente e um batalhador incansável, fez o que pode para unir suas duas paixões, o São Paulo e o trabalho, num só lugar: o escritório, onde aliás o escriba labuta desde os 10 anos de idade. Foi até a loja da esquina e negociou com o Sr. Tosseira — lendário comerciante varejista de artigos usados da cidade, que levava este nome em “virtude” de ostentar, a despeito da calvície que fazia morada sobre o juízo, um chumaço grosso e saliente de cabelos logo acima da testa — uma TV de 14 polegadas marca Telefunken. Acho que a marca nem existe mais! Dobrou o homem de pouca telha e, por prestações módicas a perder de vista (contabilidade é celibato, entendam de uma vez por todas!), cruzou metade da Rua São Paulo sofrendo para carregar aquele que seria o nosso passaporte para o Estádio Ramón de Carranza, em Cádiz, na Espanha.

Todos nós, empregados, “voaríamos” para a Espanha às expensas do pequeno e até hoje sobrevivente escritório. Instalada sobre o arquivo metálico verde musgo para pastas suspensas, a TV era o melhor lugar possível naquele estádio para todos nós. Sêo João se vangloriava disto: “vejam, comprei para vocês lugares na tribuna do estádio”. Barbaridade! Ao lado de dois corintianos, um palmeirense e um santista, secadores dos mais ativos, ácidos, barulhentos e sarcásticos, papai e eu esperávamos, ouvindo toda sorte de gracejos dos quatro, pelo jogo.

O tricolor, em estado de graça, jogando o fino, emergiu por sobre o palco verde com Zetti (que depois daria lugar a Marcos); Victor, Adilson, Ronaldo (que sairia para a entrada do craque Valber), Ivan, Dinho, Pintado (que cederia lugar a Suelio), Rai (que, consagrado, sairia para a entrada do meteórico Mauricio), Palinha, Muller e Elivelton. O técnico, valei-nos, era Telê Santana.

Já os merengues vieram, abençoados pela força habitual de quem é um dos maiores do mundo, como nós, com Juanmi; Chendo, Lasa, F. Hierro (Nando), Villarroya, Milla, Toril, Aragón, Zamorano, Prosinecki — o craque de 20 milhões de dólares, um assombro para a época — (L. Enrique), P. Llorente (Alfonso). O comando coube a Benito Floro, um distinto senhor com cara de auditor fiscal da Receita Federal. Valei-nos!

A imagem da TV bastante judiada prejudicava barbaridade, mas não havia dúvidas de que o terreno não estava à altura do confronto. Longe disso. Porém, a guerra não escolhe o solo em que habita, ocorre em qualquer lugar, sob qualquer circunstância. É quase uma força da natureza. Da natureza humana, óbvio. Aqui pretendo ser o mais claro possível: a guerra é um evento inadiável, que conta até com a conjunção dos astros, com a conspiração universal para ocorrer. Cedo ou tarde advém, nos termos escolhidos pela História, as vezes entre díspares, quase sempre entre titãs. TITÃS! Leia-se: Real Madrid e São Paulo…

Não preciso mencionar tudo o que eu e papai passamos naqueles momentos em que antecediam a partida. Os torcedores rivais falavam em goleada, em show de Prosinecki e Zamorano, que “dançariam flamenco” em cima de nós, baile, vareio, piadinhas, caixinhas de merengue de presente (que comemos tudo, sem dó!) e os cambaus. Era o contexto perfeito para a eclosão do incontestável. Ah, se eles soubessem, teriam ido embora dali…

Pois começou. O tricolor vestia o seu fardamento número dois, e segundo a segundo driblava o implacável cansaço pelo excesso de partidas disputadas. Como se não bastasse uma, travava duas batalhas, pois. Já o time espanhol, seleção do mundo, vinha de branco. Era o começo de uma auspiciosa temporada para eles, estavam descansados. E vinha com pompa, com tudo. Nem bem a partida havia começado, Muller foi alçado a voo por entrada violenta, mas leal de Lasa, como que se quisesse “marcar território”. Quem já jogou futebol sabe como é. Os rivais que nos cercavam, vibraram. Sêo João ria deles. Eu, ainda criança, queria chorar. Mas vendo meu pai rir, ria também. Sabe aquela coisa de “siga o líder”? Então…

Mas aquele São Paulo era de encher os olhos, em todos os quesitos. Moderno, compacto, competitivo, marcava implacavelmente, “mordia” em triângulos, sonegava espaços, exigia sempre o melhor de seus adversários. Era “decifra-me ou devoro-te”. Quase sempre jantava o adversário. Em outras palavras, se impunha. Querem um exemplo? Prosinecki, o 10 deles, durante boa parte do jogo se viu às voltas correndo atrás de Vítor, o nosso 2, como aos 3 minutos de jogo, quando parou o lateral tricolor com falta. Na sequência, Muller tratou de aquecer o arqueiro merengue, em chute colocado, de fora da área, depois de trama veloz do ataque tricolor. Zetti também fora testado aos 4, em chute de longe. Passou com louvor!

Sob a torcida dos locais detratores, os meus companheiros de trabalho, o Madrid mostrava vontade de domar o “puro sangue” tricolor, que tinha outros planos. Mais que isso, era indomável! Veloz e feroz, avançou sobre a defesa merengue como quem quisesse impingir sobre o adversário as agruras dos efeitos de uma guerra relâmpago. Uma espécie de “blitzkrieg” da bola. Oprimido, o Madrid iniciou sucumbência aos 7 minutos. Juanmi saiu errado, Palhinha aproveitou o rebote e lançou Raí, o monstro, que endereçou cruzado para Elivélton, que por trás de todos fincou a bandeira tricolor em terras espanholas… 0x1! “Golpe de sorte” foi o que se ouviu na sala do escritório. É, aquele tricolor era mesmo, um time de muita sorte!

Os espanhóis não perderam a panca. Pelo contrário, jogavam como se quisessem demonstrar a seus torcedores que o levante tricolor era fogo de palha e que eles, os merengues, detinham o controle da situação. E jogavam muito, era um time de muita qualidade técnica. Contudo, Dinho e Pintado “mordiam” como cães raivosos e contagiavam o resto do time, que não dava refresco ao escrete espanhol. Muller, Elivélton e até Palhinha pressionavam a saída de bola do Madrid. Raí, a certa altura da partida era marcado “individualmente” por três madridistas, que viam a bola grudar nos pés do 10 tricolor, o “alfa” das jogadas de ataque do São Paulo.

O jogo atingia os 15 minutos. O sangue nos olhos dos jogadores do São Paulo fazia esvair o que havia nas veias daqueles sujeitos que vestiam branco. Pela primeira vez na história, talvez, um espanhol entrava na arena, em “la plaza“, para morrer, não para matar. Culpa do touro da vez, um daqueles indomáveis…

Olhava ao redor da sala, e o que eu via era um certo ar de preocupação nos detratores, que quase de mãos dadas — coitados! — se entreolhavam receosos, preocupados. Acho que rezavam. Hoje, penso que estavam estupefatos, enjoados daquela costumeira constatação de soberania. Nunca fui de fazer troça. Nem precisava. Aquele time espetacular cuidava de irritar, mesmo sem querer, todo e qualquer torcedor rival, na mesma medida, talvez, que encantava todo e qualquer torcedor tricolor, vivo ou morto estivesse. Ah, meus iguais… Se para Nelson Rodrigues o Fla-Flu surgiu quarenta minutos antes do nada, então os treinos coletivos daquele São Paulo de Telê surgiram três horas antes do “Big Bang”. Detratores, me contestem!

Perdendo em casa, o Madrid vinha para cima. O São Paulo, construindo a armadilha, se encolhia, sem sofrer demasiadamente. Até porque Adílson, de sobriedade e competência magníficas, dava conta da defesa ao lado de Ronaldão, que por sua vez possuía a força de mil guerreiros e dividia tudo, da bola à alma de todo e qualquer adversário. Um trem desgovernado sob controle. Difícil de entender? Pois é. Mas era isso mesmo. Sem maiores delongas: o camisa 4 tricolor, para este mero escriba, as vezes parecia um instrumento da cólera divina, tamanha a fúria com que partia para dentro do adversário.

Prosinecki era um jogador tremendo. Tentava organizar o jogo, fazer o Madrid jogar. Tentava. Porque Pintado, simples de tudo, era a eficácia em forma de gente. Verdade também que Vítor “arava” o chão pela direita e fazia Zamorano sumir dentro das valas que abria a cada carrinho do camisa 2 tricolor. Suplantado, perdeu a cabeça e foi expulso: recebeu o amarelo por dar uma joelhada em Adílson e disse algo impublicável ao árbitro, que o mandou passear. Sumiam na mesma vala, também, os detratores, cada vez mais calados. Eram sepulcros de carne e osso. Sêo João, àquela altura, já tinha ido ao bar da esquina comprar uma sodinha e um gibi de amendoim. Poderia ser um chocolate, caberia melhor…

Fato era que o Madrid não conseguia criar, estava acéfalo. Já Muller pensava com os pés. Era o escape, fazia jogo fluir. Veloz, de raciocínio rápido e extremamente inteligente, começava a causar o costumeiro estrago na defesa adversária a partir dos 30 minutos de jogo, com arrancadas ferozes, verticais e vertiginosas.

Aos 38, por muito pouco Palhinha não conseguiu servir Elivélton, que novamente fechava pela esquerda e não fosse intervenção fundamental do goleiro Juanmi, o placar do visitante apontaria o segundo tento tricolor. Já o Madrid, só de longe e olhe lá. Fim da primeira etapa. Um silêncio ensurdecedor na sala. Os meus companheiros se levantaram suspirando em desapontamento.

No segundo tempo, o treinador do Madrid mandou Alfonso para o jogo, pensando em reforçar o setor ofensivo do time espanhol. O São Paulo voltou igual, sobretudo “no que se refere” ao apetite de Pintado e Dinho, perfeitos na marcação. Extremamente compacto, até para os dias atuais, o São Paulo dominava o jogo!

Raí era presença constante na armação e conclusão de jogadas, próximo a área do time espanhol (aprende, Ganso!) Se o 10 do Madrid era um jogador tremendo, faltavam adjetivos para descrever o 10 do São Paulo. Porque logo aos 3 — TRÊS! — minutos da segunda etapa, Raí recebeu belíssimo lançamento de Ivan, ajeitou com o peito, baixou na terra, vilipendiou a presença da zaga e tocou com extrema perícia e classe na saída do Juanmi… A limpeza do toque, a simplicidade com que o 10 resolveu a jogada foram monumentais! Cádiz esteve por um fio de vir à baixo. Um fio! Que golaço!! 0x2!!!

E avassalador rima com tricolor! Um minuto depois, Elivélton recebeu pela esquerda, cortou para o meio se livrando do zagueiro e chutou de perna direita, meio mascado, rasteiro. Juanmi fez o que pode e rebateu, mas a bola sobrou nos pés de Muller, que não titubeou e vazou pela terceira vez o goleiro do Madrid… 0x3!!!

Impotente, sobrava para o Real Madrid o expediente da violência. Os madridistas afiavam os cotovelos na cabeça os jogadores do São Paulo. Muitas dessas ocasiões a arbitragem não viu. Nas que viu, como em Ronaldão aos seis minutos, fingiu que nada aconteceu e deixou seguir. Compreensível em relação ao Madrid, mas imperdoável na atuação da arbitragem. Naquela altura, quando percebemos, estávamos sós, eu e papai, na sala do escritório. Os detratores haviam desaparecido, provavelmente sorvidos pelo chão, possessos e envergonhados. Acontece.

Os três gols eram um fardo terrível para o time de Madrid, inegavelmente. Mas a apatia dos merengues se dava pela impotência ante à imponência tricolor. Ferido de morte, o toureiro fazia o que podia para evitar o pior. Insuficiente. Porque em três toques veio a pá de cal: Zetti, o maior que o escriba já viu debaixo das traves do São Paulo, saiu jogando com Palhinha no meio-campo. O camisa 9 viu Muller em carreira solo no terreno adversário e fez o chamamento. Fugaz e preciso, Muller ganhou da defesa na velocidade que Deus lhe deu e tocou na saída do pobre Juanmi… 0x4!

E a coisa era tão grave, o impacto era tão grande na cabeça dos merengues, que mesmo cara-a-cara, na rara oportunidade que o Madrid criou, Alfonso perdeu a oportunidade de diminuir, aos 18 minutos, furando a conclusão dentro da pequena área, praticamente. Raí e Ronaldo deram lugar a Maurício e Valber, respectivamente. Deixaram o campo ovacionados, cobertos pelos consagradores aplausos da torcida rival. Incontestável! Eu e o Sêo João, em pé, aplaudíamos também. Quem passava em frente ao escritório naquele dia, via aquilo e demorava a entender. E daí que estávamos ridículos?! Quem liga?!

A fatura estava liquidada, mas poderia ter sido mais. Muller poderia ter marcado o seu terceiro, quinto do São Paulo, não tivesse tentado um passe de calcanhar quando estava quase na cara de Juanmi, tentando Palhinha que entrava pelo meio da defesa, aos 28 minutos.

O Madrid até queria evitar passar em branco. Lutava bravamente, é verdade, porém sucumbia ante a categoria de Valber, que limpava a área com muita classe. E, como não dava para penetrar na grande área tricolor, sobrava aos merengues tentar de longe, quando paravam em Zetti, que no fim deu lugar a Marcos, então goleiro reserva, aos 32 minutos. Quatro minutos mais tarde, Suélio entrou no lugar do gigante Pintado. GIGANTE! E não fosse a leniência da arbitragem, haveria mais uma expulsão para o Madrid — Nando — e consequentemente um pênalti para o tricolor, por deslealdade do defensor espanhol sobre Maurício, quando o jogador brasileiro quase teve o tornozelo quebrado por entrada criminosa do zagueiro do Real Madrid. O jogador tricolor teve de deixar o campo, com furos que faziam gotejar sangue da canela de Maurício, oriundos das travas da chuteira do jogador espanhol. Valente, Maurício voltou ao campo, mesmo combalido e foi até o fim.

Fechei a porta do escritório. Não queria ninguém atrapalhando o final do jogo e a comemoração do tricolor. Meu pai quase queimou os velhos auto-falantes da Telefunken quando o hino do São Paulo começou a tocar na TV Bandeirantes. Me lembro que na transmissão da TV, ao vivo, Neto admitiu que o São Paulo era um dos melhores times do mundo, senão o melhor. Sinceramente: não tem preço!

Ora, se o Sarriá se rendeu à Telê em 82 naquela tragédia, dez anos mais tarde, a mesma Espanha, desta vez o Carranza, em Cádiz, agora o reverenciava no triunfo… São Paulo F.C., campeão do Torneio Ramón de Carranza de 1992! Que belíssimo dia!

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P.S.: Enquanto escrevia essa coluna, busquei informações sobre confrontos entre Real Madrid e São Paulo, que mostro na imagem abaixo, retirada do site http://www.campeoesdofutebol.com.br/confrontos_clubes6.html. Dá ideia do tamanho do tricolor diante deste gigante europeu. Todos nós sabemos o que aquele time jogou, onde chegou, quem enfrentou, como enfrentou e o que fez. Pachequismos à parte (como vimos na semana passada, em alguns setores da imprensa), talvez tenha sido, junto ao Santos de Pelé e o Flamengo de Zico, um time capaz de fazer jus à disputa de uma Champions League.

Imagem sem título

Para deleite daqueles que tiverem quase duas horas livres, segue o jogo na íntegra…