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COLUNA DO PAULO MARTINS

SIMÃO, O PESCADOR DE SONHOS!

Início de temporada. Época de boatos. Contratações, “diz que me diz”. Informações desencontradas… Escolhas! Em tempos como este, em que muitos, por assim dizer, “decidem suas vidas” para os próximos anos, nos questionamos sobre o que realmente importa, naquilo que é prioridade para cada um. Dada a complexidade do ser humano em suas aspirações diversas, de certo modo há também diversidade de prioridades.

Simão, com sete anos de idade, tinha as dele. As que ele mesmo elegia e, dadas as demandas da vida, as que o preço por existir lhe impunha. O menino raquítico, miúdo, de dentes proeminentes e de joelhos “ossudos” e saltados adorava a bola. A prioridade do menino era estar no campinho o maior tempo possível. Entretanto, a vida era mais forte e quase sempre tinha poder de impor. Não havia como negociar. Com a saúde frágil – otite, bronquite, faringite… o moleque sofria de tudo – ficava bastante tempo acamado. Era a epopeia da vida lhe oferecendo limões, para vê-lo dar um jeito de fazer boas limonadas.

Gostava muito de futebol, de jogar principalmente, mas dadas as suas problemáticas condições físicas, fora forçado a desenvolver apreço de escutar sobre o assunto no rádio de pilha que havia ganhado de dona Salvatina, a vizinha da casa 53, uma senhora viúva e sem filhos que ia sempre para São Paulo visitar suas irmãs e que, como gostava do menino, lhe trazia de vez e quando alguns mimos da capital. No natal de 1941,  Simão foi agraciado com um pequeno radinho de ondas curtas e médias. Era isso ou nada de bola.

Numa dessas diversas vezes em que ficou “de molho”, dessa vez por fortes dores de barriga causadas por uma infestação vermes que lhe rendeu o apelido de “Lumbriguento”, deitado com o rádio colado no ouvido a tentar sintonizar as rádios que estivessem falando da bola, de preferência do “seu” São Paulo. Trabalho dos mais difíceis. Na maioria das vezes, o que mais ouvia eram palavras que naquela tenra idade não compreendia. Falavam de holocausto, genocídio, bombardeios… As notícias que chegavam pelo rádio eram quase que monopolizadas pelo flagelo da segunda grande guerra que abatia o mundo, sobretudo Europa, Ásia e África, teatros dos maiores conflitos.

Mas falava-se de bola também. E o menino, atento à Rádio Tupi que era a que melhor pegava no Condado, ouviu certa vez o nome de um tal Leônidas da Silva, que jogava no Flamengo. Não se sabe dizer se pelo nome, ou pelo que ouvia do jogador, as partidas fantásticas que fazia, ou os dois, Simão encantou-se por ele. Quando, em 1942, Leônidas foi vendido ao São Paulo, o menino chorou. Ninguém da família entendeu o que se passava. Achavam que o menino estivesse sendo acometido pelas fortes dores abdominais, vez que, barrigudinho, era um criadouro de “bichas”, como por aqui chamavam os parasitas.

Mas não era nada disso. Simão chorava de alegria. E perguntou ao pai, sêo Pedro, também tricolor, o porquê de o São Paulo ter comprado Leônidas. O pai não sabia os reais motivos, mas aproveitou a oportunidade para nutrir o orgulho do filho pelo São Paulo e lhe disse: “Sabe filho, quando grandes pessoas encontram grandes instituições, como o São Paulo, eles não têm somente a chance de realizar bons trabalhos. Eles têm chance de fazer HISTÓRIA!”. O menino, mesmo ainda repleto de ingenuidade, compreendeu o que o pai quis dizer e concordou, com a cabeça.

E aqueles tempos eram bem difíceis para o São Paulo. Poucos tinham fé no time, ante o domínio dos rivais Palmeiras e Corinthians que se alternavam na posse dos títulos estaduais. Diziam até que o título, entre os dois, poderia ser decidido no “cara e coroa” e que o São Paulo só ganharia se a moeda caísse em pé. E o grande homem dentro da grande instituição havia de ser o responsável por cravar a moeda no solo, na frente de todos, fazendo o chão rachar, mais ainda que os calcanhares de Simão, castigados pelas caminhadas no pedregoso solo do Condado dos Guarás.

No dia 24 de Maio de 1942, um domingo, o menino não desgrudou do rádio. Era a estreia de Leônidas no “seu” São Paulo, como ele mesmo dizia. E era um clássico, contra o Corinthians. O tricolor foi a campo com Doutor; Fiorotti e Virgílio; Zacilis, Lola e Silva; Luizinho, Waldemar de Brito, Leônidas da Silva, Teixeirinha e Pardal. Aquele jogo que acabou 3×3 foi o primeiro de Leônidas, que no ano seguinte, em 1943, fez a moeda cair em pé. Campeão,  Simão vibrou com o radinho ao pé do ouvido. Havia realizado o sonho de ver o “seu” São Paulo acima de todos.

O tempo passou e Simão confirmou o que pai havia lhe dito: Leônidas, um grande, uniu-se ao São Paulo, um gigante colossal, para fazer história. E compreendeu do que se tratava, afinal: “A prioridade de Leônidas foi o São Paulo e tudo o que se sucedeu foi por consequência disso!”

Simão hoje mora no céu. Ele queria ser jogador do São Paulo. Mal jogou nos campinhos de terra do Condado. Se tornou comerciante, dono de um armazém de “secos e molhados” na Rua Ugolino de Moraes, esquina com a Rua Professora Ana Cândida Rolim. Morava na casa dos fundos, onde viveu até seu último dia. Era um sujeito simples e apaixonado pelo diamante que ri.

Antes de partir, viu em vida os títulos mais importantes do São Paulo. E numa das inúmeras conversas que tivemos me contou essa história. E me confidenciou também que vivia às voltas com as guinadas do mundo. Dizia não compreender o fato de a grande maioria dos jogadores ter como prioridade acumular riquezas, coisas, ao invés de investir na possibilidade de fazer história, de marcar seu nome em algum time, de se identificar com algum lugar. Dizia que, depois disso, tudo viria por consequência…

Dizia que parecia não mais pertencer ao mundo que via. Talvez não pertencesse mais mesmo. Talvez a vida seja assim, quando não nos enquadramos mais, é porque a barca está a caminho. Meu amigo embarcou nela, há alguns anos.

Se as escrituras tinham um Simão pescador de homens, aquele Simão, o nosso, hoje seria um pescador de sonhos… É, o mundo da bola mudou mesmo, Simão!

Por: Paulo Martins