Banner - Coluna do Paulo Martins

“O tempo é o senhor da razão”. Dizem ser um provérbio português e outros atribuem-na ao francês Marcel Proust, autor do clássico “Em busca do tempo perdido”. O escriba não sabe quem a disse, mas de certo modo, traz consigo um significado relevante, um desfecho importante, o de que o tempo se encarregará de trazer a nós, humanos, a razão. Quase sempre é o que ocorre, de fato. Mas não dentro de um campo de futebol. Constata-se que naquele espaço o tempo traz, também, a loucura do prenuncio do fim.

Dentro das quatro linhas, a estridência do apito final diz mais que o fim do jogo em si. Subliminarmente ou nem tanto, em ciclos de 90 minutos ou pouco mais que isso, fiam-se fugazmente as vidas da bola, as carreiras, por assim dizer. Ou seja, 90 minutos dentro de campo custam muito mais tempo do que 90 minutos fora para aqueles que transpiram no esporte e pelo esporte. Confuso? Explico: a vida dos pés penteando a relva verde ao conduzir a bola dura pouco, muito menos do que a vida em si, muito embora haja ocasiões em que a vida fora dos campos ceife o deleite dentro dele. Às vezes, acabam-se os dois. Uma crueldade, pensamos num primeiro momento. Mas o quão cruel é a decadência consciente, o famoso “eu  já não consigo mais”?

Josué, que ganhava a vida jogando na várzea, vinha experimentando a estranha sensação de que os gramados se agigantavam dia por dia. O fim de cada ciclo trazia consequências. Do vigor à extenuação contumaz. Os 90 minutos lhe cobravam algumas horas durante os dias seguintes com as pernas de molho, imersas na salmoura de Dona Benedita, a mãe. E o período de imersão ia crescendo. Na juventude quando ainda nutria esperanças de ser jogador profissional, uma tarde de sono bastava, afinal não foram poucos os finais de semana em que de manhã jogava com os veteranos e a tardezinha voltava ao campo para engrossar as fileiras do time principal do Merinco Olho D’ Água, o M.O.A. Era segundo volante, fazia o time respirar e era um dos destaques daquele escrete. E, fruto da rivalidade da várzea, era mantido por Sêo Manuel, um português radicado no Brasil, torcedor do São Paulo e do Porto. Este, por sua vez, dividia a alcunha de mecenas do time com Dr. José Lopes, advogado dos mais competentes, também português radicado no Brasil. Juntos, eles mantinham, por amor à bola, o encardido M.O.A.

O tempo passou e Josué não vingou no futebol profissional. Restou-lhe a várzea para aplacar a paixão. E esse tipo de campeonato, apesar de terminar em janeiro naquele lugar, era razoavelmente organizado. Haviam times uniformizados, patrocínios, torcida… Reunia gente nos bairros e havia uma rivalidade feroz. Em certas ocasiões ocorria até escambo no intervalo: trocava-se soco por pontapé. Era uma coisa feia.

Consta que aos trancos e barrancos, o M.O.A. foi adiante no duro campeonato de várzea de 1998, com mais dificuldade do que de costume, afinal o time havia perdido alguns de seus jogadores no meio da competição, destacadamente o meia Agnes, surrupiado na calada da noite para o Genk, da Bélgica. E porque Josué já não era mais o mesmo, de modo Fabinho, o meia, sofria para fazer o time jogar sozinho. E o homem de área, Cisco, um gigante de 1,98 quase morria de inanição, posto que centroavante vive de gols e bolas minguavam para ele definir na grande área.

Pois bem, classificado para as semifinais do campeonato, o M.O.A. enfrentou os Voluntários do Pito Aceso. Nome engraçado? É. Mas era um time barra pesada. As más línguas diziam que era sustentado pelo tráfico. Mas o fato é que havia um grande poder financeiro sustentando o time, contratando ex-jogadores profissionais de pouca expressão. Para os padrões da várzea, gastava a bola.

Era um jogo daqueles grandes. Josué estava ciente. Enfaixou bem os tornozelos inchados e foi para o jogo. Os primeiros dez minutos foram como de costume. Boa distribuição de jogo, combate, desarme. Dali em diante, o peso do tempo rugiu. E rugiu alto. Josué recebia a bola, olho no olho com o marcador, fintava e ia para o drible. Aparentemente passava. Quando dava o passo seguinte para efetivar a vantagem, via diante dele o mesmo marcador, em pé. Driblava de novo e ao olhar para frente o sujeito ainda estava lá. Então pisava na bola e passava de lado, para o companheiro mais próximo.

O jogo transcorria e a medida em que o tempo passava Josué se desconectava dele. Era como se a partida lhe escorresse entre dedos. Os braços já não passavam a maior parte do tempo intercalando-se no movimento biomecânico e natural de quem corre para a disputa. Insistiam em formar um trapézio, escorados pelas mãos apoiadas na cintura, postura de quem vê algo de longe, cabisbaixo, rendido. Martelava na cabeça os conselhos que recebia da mãe, que de cócoras esfregava as canelas e tornozelos inchados do filho com salmoura: “Para, Josué. Para. Você já fez o necessário, o que podia, deu tudo o que tinha, meu filho”.

Aos 40 anos de idade, aquele é o seu último ciclo. Ele havia percebido. E a crueldade se dá pela maneira em que essa situação se revela a todo quase ex-jogador: a impotência durante a partida, naquele que até então era o seu ambiente. Percebe que não é mais. Aquilo lhe dói na alma. É um punhal que lhe rasga ao meio a todo momento em que é chamado ao jogo, seja para receber o passe de alguém, seja para conter o avanço adversário.

“Para Josué. Para, meu filho!”. Deu um último pique e sentiu no ouvido um estrondo que parecia vir do peito, como se o coração tivesse batido em descompasso. Foi o sinal de que tudo havia terminado e era o fim para ele. Sucumbiu ao tempo. Josué foi até o fim do jogo. Extenuado, com as mãos no joelho, abaixou o meião libertando os tornozelos da bandagem, surrados pelo esforço. Tirou as chuteiras e foi em direção ao banco de reservas. O treinador veio ao seu encontro e, como se em comunhão estivessem, disse: “Deu, né Josué!”, seguido de dois tapinhas no ombro, como que consolando o outrora “monstro da camisa 8”. Com os olhos nadando, Josué só teve forças para acenar com um movimento curto de cabeça. Nunca mais o viram num campo de futebol, seja de terra, areia ou grama.

O também ex-jogador Falcão costuma dizer que o jogador de futebol tem duas vidas e compara o fim de carreira de um jogador de com a morte de uma delas. Deve ser por isso que Josué, até hoje, não se lembra do resultado daquele jogo. Afinal de contas, mal comparando, naquela que é a mais dura despedida de todas, “a despedida das despedidas”, é quase impossível lembrar de mais alguma coisa que não apenas o cortejo do féretro, do esquife que sepultará a vida velha, de onde florescerá a certeza de que nada mais será como antes.

Janeiro é recomeço para uns e fim para outros. No fim, o que sobra é ela, a bola, seguida do sonho e de toda história que vive dentro dela.

Sorte a todos os “Josués” que morrem e continuam vivendo!