Banner - Coluna do Paulo Martins

Início da década de 60. Fim de dezembro. Crepúsculo de ano. O “Condado dos Guarás” preparava-se para as festas de fim de ano. A Rua São Paulo, a principal da cidade, sem calçamento, toda pujante, parecia se orgulhar do tilintar causado pelo atrito das rodas de madeira das carroças com o chão de pedregulhos. O estalar da borracha dos “pneumáticos” dos Ford de sêo Titi Rocha e Maestro Laelson, as duas únicas viaturas motorizadas da cidade, planando sobre o chão descalço eram luxo e as pessoas iam às portas dos comércios e casas para vê-los desfilar, mesmo que pouco pudesse ser visto, dada o invólucro quase intransponível da bruma de fumaça azul ao redor dos bólidos. Coisas da modernidade que dava as caras no pequeno condado, numa época em que a luz acabava as dez da noite e o pão era deixado na porta das casas. Coisas de um tempo que não volta mais.

E aquela rua, por certo, orgulhava-se mais ainda de ser caminho dos transeuntes que ocupavam suas calçadas e faziam dela um parlatório onde tratava-se de diversos assuntos, mas naquela época sobretudo dois, com maior destaque: as festas de fim de ano e o início da preparação para o clássico dos clássicos, o torneio dos torneios, o embate dos embates, o duelo titânico entre duas cores, o tradicionalíssimo Verde x Vermelho. E a folia de Momo quase se antecipava à visita do Papai Noel. As “listas” – onde os jogadores locais firmavam compromisso com uma ou outra cor – começavam a circular no centro da cidade e em bairros rurais. A coisa era séria. Políticos locais, mais abastados, até se utilizavam do poderio financeiro para convencer este ou aquele jogador a escolher atuar em favor da cor pela qual torciam. Era tempo de definição. Os treinos, que já aconteciam com todos os jogadores misturados, passariam a ser fechados, cada qual com seu escrete, cada cor treinando em locais distintos.

As listas de ambos os times estavam quase cheias e os grupos se dividiram. Naquele ano o Vermelho começou a contar com o sujeito que faria história sob sua cor: José de Oliveira Matos, mais conhecido como Martelo. De boa estatura para a época, Martelo era polivalente. Tal qual Pelé (sorry, Edson!), jogava na linha e no gol. Ia bem nas duas. Na linha, comandava o ataque com a camisa 9. Mas podia, muito bem, jogar com a 10, mais recuado, armando e pensando o jogo. Qualidade não lhe faltava e o escriba imagina até que faria tal trabalho naquele ano, não contasse o escrete vermelho com o fabuloso Adilson, filho do Sr. Chico de Barros, que jogava o fino e, com méritos, era o legítimo dono da 10. Curiosidade: fisicamente e pela bola que jogava, poderia ser facilmente – sem exageros! – confundido com o Divino, aquele que escolheu o verde, não de Guareí, mas de Palestra Itália.

Mas voltemos à José.

Martelo, um pouco franzino na flor de seus 18 anos, tinha boa velocidade também. E uma impulsão digna de quem parecia ter foguetes nos pés. Sem correr, parado, pulava e batia a cabeça no travessão. Correndo, sabe Deus onde podia ir. Era um monstro nas jogadas aéreas e essa qualidade o destacava também no gol.

E depois de um desses treinos, Dito Siqueira, presidente da Associação Atlética Guareiense, entidade que organizava o torneio, pensando em dar ritmo a ambos os times, marcou amistosos para Verde e Vermelho. O Verde jogou contra o time da Tuia. Já o Vermelho, com a temida equipe da Associação de Itapetininga, time que disputava torneios profissionais e tinha a fama de “recrutar”, sabe-se lá como, bons jogadores em início de carreira e até alguns com alguma fama, já na decrescente da vida da bola. Para essa ocasião, veio para o Condado um tal de Marinho Chagas. Ficaram evidentes as preferências de Dito Siqueira. O Verde iria passear. Já o Vermelho, para ser humilhado.

O time de Itapetininga preparava-se para defender o título de campeão amador do estado. O Vermelho, para o carnaval. Cada qual com a sua importância, os cartolas de ambos os times firmaram um pacto de zelar pela integridade dos jogadores, arrefecendo os ânimos, sem “botinadas”, com a intenção de prevenirem-se de eventuais baixas em seus elencos. Mas, como sabemos, dentro de campo este tipo de coisa tem pouca ou nenhuma importância.

No primeiro lance de jogo, Adilson desceu pela meia, tabelou com Conde e centrou na grande área. Martelo correu e saltou quase meio metro a mais que todos e meteu a cabeça na bola, que saiu assobiando e explodiu no travessão de Maurão, um gigante de mais de dois metros de altura que resguardava a meta do time itapetiningano, que espalmou com os olhos, imóvel. Não querendo correr riscos, Vicentão, treinador do escrete da terra de Julio Prestes, presidente da república e natural de Itapetininga, deslocou o ótimo Marinho Chagas para a zaga, para que “desse conta” daquele magrelo que parecia ter uma marreta no lugar da cabeça e foguetes nos pés. Sacou Sanches do ataque e mandou para o jogo Vartão, formando uma dupla de carniceiros com Sabrão, com instruções de grudar em Adilson e pará-lo, nem que fosse à bala.

O jogo endureceu, virou luta de foice no escuro e “adeus técnica”. O pau cantava. A coisa estava tão feia que, como se diz, a giripoca não piou. De medo, ela fugiu. Era uma disputa feroz. A única coisa que lembrava a todos de se tratar de um jogo de bola era o apito do árbitro. Luta campal, mas leal, no limiar da morte, na medida do possível. Puxões de toda sorte. Cotovelos fiavam-se no ar como espadas. Jogo de corpo na voadora e, de repente, tudo o que havia do pescoço para baixo era canela. Carrinhos abriam valas na grama. Abriam covas, na verdade, buracos de fazerem inveja à Barnabé, o coveiro municipal, que mesmo com pá, chibanca e enxadão, em pé, pendurado no alambrado, jurava não conseguir fazer igual.

Até que Marivaldo, aos 40 do segundo tempo, cobrou escanteio. A bola fez o arco. Martelo, da meia-lua da grande área, partiu em direção ao centro do retângulo e saltou. Marinho, soberano até então, foi de encontro, confiante, certo de anular o menino magrelo, como vinha fazendo. O franzino chegou antes e mais alto. E praticamente chutou de cabeça. Foi um tiro! Maurão tentou de novo o expediente de espalmar com os olhos, mas falhou e o camisa 9 vermelho quase furou a rede. Golaço! O goleiro, se apoiando no joelho para levantar-se, riu e soltou, para os que estavam perto escutar: “Ê Marinho… Achou o seu hoje, é?”. Exalando ódio pelos poros, Marinho, com o “pai de todos” em riste, mandou o seu arqueiro às favas. Foi menos educado que o texto, claro. Mas os amigos leitores não merecem a grosseria.

Só que o time de Itapetininga não era bobo e, dois minutos depois, Sabrão fez naquele dia o que nunca fez na vida: lançou primorosamente Maguedal, que cara-a-cara com Helio do Fumeiro, o goleiro do Vermelho, foi derrubado pelo camisa 1. Pênalti e expulsão. Não havia o que fazer. Martelo foi para o gol, mas não impediu o tento do próprio Maguedal. 1×1.  Jogo acabou e, para não descontentar os presentes no campo, decidiram ali mesmo que seria definido nos pênaltis. As cobranças foram se sucedendo e sendo convertidas. Até que Maguedal errou a sua, a quarta da Associação de Itapetininga. Adilson converteu para Guareí e fez 4×3. A batata ardente sobrou para Vartão, a fina flor da grossura futebolística, com ruindade proporcional à sua coragem. E ele chutava forte como um cavalo. Era a “bola de segurança do time. O camisa 13 arrumou a pelota e foi se afastando, se afastando… Saiu da grande área. Olhando para a bola, partiu em linha reta com a fúria de um touro ferido. Martelo percebeu. Helio do Fumeiro, no alambrado atrás do gol, cantou a jogada: “Télo, ele vai chutar no meio do gol”. Martelo fincou os pés no solo arenoso entre as traves e se preparou para o impacto. A bola até se deformou ao deixar a marca da cal. Cantando, explodiu no peito de Martelo, que foi brutalmente arremessado para as redes quando a bola atingiu sua caixa torácica e subiu. Subiu mais alto que os eucaliptos que cercavam o campo e em câmera lenta, cheia de efeito, ricocheteou no alambrado, atrás do gol.

Dito Siqueira, mostrou ser melancia, naquele dia: verde por fora e vermelho por dentro. Ele e todo o banco do Vermelho correram para abraçar Martelo, o herói do jogo. Tossindo como “vaca véia”, Télo não queria saber de brincadeira… Lembrou-se mais do pacto que haviam firmado antes do jogo e esqueceu-se do milagre que tinha feito e, possesso, foi para cima de Vartão, com os olhos arregalados, em “posição de combate”, berrando: “Porque encher o pé? Porque encher o pé? Porque encher o pé?”… O “pessoal do deixa disso” mais ria do que se preocupava com o magrelo. No fim, foram todos tomar uma cervejinha e aproveitar o almoço oferecido pelo Sr. Dito Siqueira, presidente da A.A.G.

Aquele foi o primeiro jogo de muitos de Martelo com o “principal” (como se chama o time titular do vermelho), time em que ele fez história e hoje é, com 42 gols, o maior artilheiro de todos os tempos do torneio.

Foto da Rua São Paulo, de Guareí-SP, no início da década de 60.3361840700_e1fe68102a_o

Salve José de Oliveira Matos, mais conhecido como Martelo!