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O Verde x Vermelho – Mais que uma história, uma centelha de esperança para uma nação que sofre!

Naquela pequena cidade não tem carnaval. Ao menos não como se conhece. Não há escolas de samba, tampouco trio-elétrico e, desde que o “Clube” sucumbiu à bancarrota, há quase 20 anos, nem carnaval de salão. Enquanto o país pulsa sob os mais diversos sons, nesse lugarzinho tudo acontece ao redor de um campo de futebol. Não que não haja resquícios da Folia de Momo. As clássicas marchinhas de carnaval ecoam pelas dependências do estádio municipal, cantadas a plenos pulmões por pessoas que se dividem, como se não houvesse amanhã, entre duas cores: Verde e Vermelho. Pensando bem, Verde x Vermelho é mais apropriado.

Nos dias de carnaval, assim é Guareí, que em Tupy-Guarany quer dizer “Rio do Lobo Guará”, ou “Condado dos Guarás”, como o escriba a chama: uma pequena cidade de pouco mais de 10 mil habitantes dividida por um clássico disputado em melhor de três, que se inicia no domingo e termina na terça-feira de carnaval.

Em algumas oportunidades, somente duas, quando a mesma cor vencia  domingo e segunda. Dá pra imaginar a humilhação para a torcida do outro time, não?! Passar o ano todo com o refrão “Só… Duas tardes!” ecoando na cabeça!

É de suma importância salientar, para que o(a) amigo(a) leitor(a) tenha noção do que é um Verde x Vermelho, que por três dias amigos de infância se digladiam em campo e famílias inteiras se dividem na arquibancada. Assim como inimigos ferrenhos cantam abraçados o hino da equipe. É algo singular. Meio “coisa de doido”. O futebol é assim. Alguns insistem que é a maior invenção da humanidade. E deve ser mesmo, pois.

Mas voltemos ao clássico, ao glorioso Verde x Vermelho. Melhor, voltemos aos idos de 1964, quando o mundo era outro. Frente-a-frente, dois escretes fantásticos, para os padrões do “Condado” evidentemente. Embora algum tempo antes deste torneio, uma equipe que tinha Marinho Chagas e Paraná tivesse passado apuros para derrotar um selecionado dessas duas cores em um jogo amistoso.

O escrete verde foi a campo com Ademar do Januário; Zé do Lardo, Betão, Divanil e Rubinho; Toninho do Nenê, Ari do Santo, Adilson do Santo e Tau; Tuza e João Alcindo;

Já o vermelho, tinha Roldão; João do Nenê, Hélio do Fumeiro, Ari do Vilarino e João do Januário; José Araldo, Adilson do Chico de Barros, Júlio da Mariazinha e Darcy da Cema; Zé do Véio e Martelo.

A bola rolou. E é curioso como a pelota, naquela época fruto das suadas expensas da saudosa A.A.G. (Associação Atlética Guareiense), se adapta ao espetáculo. Senão vejamos: num Morumbi lotado em dia de decisão, ela trafega solene, de pé em pé, “classuda”, altiva, seja nos pés de Raí ou do treinador que aquece os arqueiros. No Estádio Municipal do “Condado”, ela ganhava ares de folia, e até de maltrato, embora fossem raros tais momentos, garantem os que estavam presentes.  Mas em tidas as situações, resta incontroverso que a pelota emana certo “quê” de dramaticidade.

Enfim, o fato é que, com menos de 20 minutos de jogo, a equipe verde já vencia por sonoros 3×0, três tentos indefensáveis de João Alcindo. Com uma vitória para cada lado nas duas tardes anteriores, estava pavimentado o caminho para a vitória do Torneio de Carnaval de 1964. E era um senhor baile de bola. Parecia um time de profissionais (os verdes) enfrentando um time de garotos imberbes recém-saídos da categoria dente-de-leite (os vermelhos). Tau com a 8 e Tuza com a 7  jogavam como queriam, com liberdade e categoria. Toninho do Nenê era uma parede no meio campo.  João Alcindo, o 9, era o dono da área vermelha. Resumindo: um inferno verde! O primeiro tempo acabou em 3×0. Lucro para o escrete vermelho, que poderia ter o balaio dilatado por pelo menos mais três tentos, não fossem as intervenções providenciais do São Paulino Roldão, que hoje mora no céu.

O segundo tempo se iniciou. O passeio seguiu. E era tão colossal que parte da torcida vermelha, humilhada, já deixava as dependências do estádio antes dos dez minutos do segundo tempo, impulsionada também pelo acinzentado do céu, sinal de chuva iminente. Entretanto, a maior parte persistiu, à espera de um milagre.

A torcida verde delirava e a confiança no título de 64 era grande, tão grande a ponto de o Maestro Laelson do Amaral, autor do hino do município e torcedor fanático do Verde deixar o campo e ir até a sede da Banda Municipal para reunir os músicos a fim de animar a festa do time nas cercanias do estádio. Saiu em carreira-solo, como um doido, e foi recrutando os músicos um a um. O baixo, os trompetes, sax alto, clarinete, pratos, caixa clara, bumbo… A banda municipal, carinhosamente chamada de “A Furiosa” foi tomando forma. Tudo ia bem, a festa verde ia sendo armada.

Só se esqueceram de combinar com o trio Adilson do Chico de Barros, Darcy e Martelo, do Vermelho. Martelo, não por acaso, é o maior artilheiro da História do confronto, que tinha esse apelido graças à força descomunal de seu cabeceio.

Perdidos por três, perdidos por dez! E então a história registrou algo inédito na evolução humana: em questão de minutos, os meninos imberbes cresceram, foram à adolescência, deixaram a puberdade e tornaram-se homens.

Acertaram suas diferenças dentro de campo e começaram a mandar no jogo a partir dos 25 minutos do segundo tempo. E a coisa começou a virar! O milagre se insurgia na grama verde e começava a brotar nos pés dos homens de vermelho, debaixo dos olhos de todos.

Adilson do Chico de Barros, o 10 do escrete vermelho, dali em diante foi um “maeonstro”, porque era maestro e monstro ao mesmo tempo. Mandava no jogo! Em alguns lances, lembrava o Divino, tratava a bola com fidalguia, como se ela fosse – e é! – uma das maravilhas do mundo. E a colocava onde e como queria. A equipe verde, com certo desdém, olhava incrédula o ressurgimento, a imponência de Adílson quando o 10 vermelho alçou a redonda na área, para Darcy matar no peito, baixar na terra e arrematar de esquerda, quase vazando as redes do tricolor Ademar, o “arqueiro verde”, que nada pode fazer a não ser se lamentar.

“3×1. Ok! Ainda estamos na frente” era o pensamento do lado verde. Mas era contra um time de homens, não mais de moleques. E não deu outra: bola alta na área verde, próximo da marca do pênalti. Martelo veio na corrida e saltou dois passos depois da linha. Parecia um ser alado! Voou para a bola e a atingiu na marca penal como uma marreta, de cabeça! Dizem que o estádio todo ouviu o som do impacto: um petardo que estufou as redes… 3×2!

O escrete verde se encolhia, contrariando seu treinador, Sr. Benedito Siqueira, presidente da A.A.G. e tio-avô deste escriba, que aos berros ordenava que o time avançasse, que jogassem e não assistissem, como passaram a fazer. A desconfiança já dava o tom dos já combalidos cânticos entoados pela torcida verde. A descrença na derrota virou desgraça anunciada quando ele, Martelo, passou para Adilson, craque do time, quase dentro da pequena área, dar um toque magistral por cima do goleiro Ademar, já emocionalmente abalado pelo levante vermelho que acontecia dentro de sua área. Empate! 3×3!

O impossível estava acontecendo no Estádio Municipal, diante dos olhos agraciados dos que estavam presentes. A bola parecia sangrar, tingida de vermelho. Cada gomo de capotão era o coração dos 11 que queriam transformar o impossível em fato consumado. E coube a Martelo, em dia de Mjolnir, demolir o esquema defensivo adversário: o camisa 9, que sabia matar mas também servia, recebeu de José Araldo, clássico médio volante do time vermelho, na lateral direita. Olhou para a área e viu somente o pequenino Darcy. Cruzou a bola para o companheiro de um metro e meio de altura envolto dos grandalhões adversários. Teve fé, muita fé! Parecia que estava escrito… A gorduchinha foi saindo da marcação, desviando do alcance dos grandalhões um por um, até encontrar Darcy, que foi até o teto e testou a bola de sua vida, fazendo derreter o chumbo do céu! Vermelho, impossível, 4. Verde, incrédulo, 3.

O apitador ergue os braços, aponta o centro de campo e o jogo acaba. Êxtase total dos vermelhos corajosos da arquibancada, que enfrentaram o 3×0 contrário e não arredaram pé do campo. Resultado histórico! Aos verdes, restava o fel impregnado na boca, por perder um jogo vencido, mas acima de tudo, a certeza de estarem presenciando e fazendo parte de um momento histórico!

O estádio explodia tingido de vermelho quando apontou, na esquina a “Furiosa” tocando “Cidade Maravilhosa”, já quase adentrando as dependências do campo. E o saudoso maestro Laelson, de batuta na mão, não acreditava no que via. A “Cidade Maravilhosa” desandou e em questão de segundos ninguém mais se entendia na música, que ganhou ares de marcha fúnebre! Desolado, o maestro perguntava: “Como é possível?” E o “baixista” quase se enfiou na tuba, tamanho o desgosto!

O escriba, como é peculiar ao ofício, colheu depoimentos de diversas pessoas que estiveram no estádio, sobre os acontecimentos. Alguns os fizeram com riqueza de detalhes. Outros, com alguma imprecisão. Em que pese o tempo e os parcos registros históricos,  os nomes e as pessoas são reais e correspondem a verdade, ainda que com alguma imprecisão aqui ou ali do todo relatado. E, certamente, alguma dose exagerada de saudosismo por um tempo que o escriba não viveu (como explicar isso?!) e carinho exacerbado pelas memórias do lugar em que vive.

Em Guareí, o carnaval é assim: uma tradição diferente que se repete e se renova todos os anos.

Nos tempos atuais, a rádio comunitária local (Rádio Realidade FM) transmite o evento para o mundo todo pela internet e este que vos escreve é o responsável pelos comentários dos jogos, junto com a fera Otacílio Jr, que humildemente encontra um espaço na sua agenda para abrilhantar o evento.

Perdoem o longo texto, mas não havia outro jeito. Além de compartilhar uma história bastante famosa de algo da minha terra, ele traz consigo um pedido: não desanimemos, porque o jogo vai virar e juntos, time e torcida, faremos derreter o chumbo do céu!

Viva Guareí! Força SÃO PAULO!

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Homenagem ao Mestre que hoje completaria 82 anos!

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